UMA DATA NA HISTÓRIA – 7 de Setembro de 1974… Acordos de Lusaka
O MEU 7 DE SETEMBRO
Eu estava nos estúdios da “Golo” no dia 6 de Setembro. Era uma sexta feira. De repente começo a ouvir vozes. Parei a gravação que estava a fazer, fui à porta do edifício (onde hoje funciona o Ministério da Administração Estatal e da Função Pública) e observei que da rua do lado do Jardim Tunduru começava a vir muita gente. A maior parte deles eram brancos. Vinham aos gritos.
No dia seguinte (sábado) desloquei-me ao Rádio Clube porque, perante os distúrbios do dia anterior, era preciso saber se podiamos fazer o relato de futebol programado para domingo. Fui eu porque o António Alves da Fonseca, que normalmente tratava dessas coisas, encontrava-se na capital da Zâmbia, para a cobertura da assinatura dos Acordos de Lusaka. Saí de casa por volta das 14.00 horas. Quando cheguei à porta da Rádio vi muita gente. Não estava a perceber o que era aquilo. Associei de imediato esse grupo de manifestantes ao que eu tinha visto passar no dia anterior. Havia música alta que era transmitida de aparelhos sonoros. Música portuguesa fundamentalmente. Entrei, dirigi-me aos serviços técnicos. Quando lá cheguei apercebi-me que os meus colegas estavam a receber via telefone os discursos do Acordo de Lusaka. Os invasores bem queriam essa bobina. Felizmente nunca tiveram acesso a ela porque as artimanhas do técnico de serviço, permitiram que a bobina ficasse muito bem escondida.
Questionei sobre o relato de futebol do dia seguinte. Eu precisava de saber e ninguém me respondia. Ou melhor, os invasores estavam tão baralhados que já não diziam coisa com coisa. Um dizia que era bom que houvesse relato, porque “o relato é uma tradição”. Outros diziam que não. O relato podia fazer desviar a atenção dos ouvintes para o objectivo principal desse movimento chamado de “Moçambique Livre”.
Um dos invasores pega em mim e leva-se à Sala de Sessões da Direcção do RCM onde eu nunca tinha entrado. Na sala estavam várias pessoas. Uma delas (vim a saber depois que se tratava dum tal “locutor Manuel”) pergunta-me: “você é o João de Sousa”? Disse-lhe que sim. E ele acrescentou: “ainda não se sabe, se vai haver relato de futebol amanhã. Mas nós vamos precisar de si, porque temos falta de pessoas com capacidade para falar ao microfone. Você vai para os estúdios ler as mensagens que lhe formos passando”.
Escoltado por dois elementos armados desse “movimento”, fui até à área de estúdios. Fiz o que eles queriam que eu fizesse. Li mensagens que um dos invasores me ia entregando, e colocava música. Essencialmente música portuguesa. De meia em meia hora tinha de colocar “no ar” o Hino Nacional de Portugal.
Com o andar do tempo comecei a aperceber-me da enorme confusão que se apoderava dos mentores desse “movimento”. Pelo menos daqueles (armados) que me rodeavam. Comecei a verificar que tinha de sair dali. Como ? Não era fácil, porque havia homens armados por todos os lados. No átrio dos estúdios, nos corredores, nas portas de acesso aos serviços técnicos.
A determinado momento pedi a um dos responsáveis pela seguranca do estúdio que me deixasse ir à casa de banho, pois precisava de urinar. “Vais mas tens de ser acompanhado”. E fui acompanhado por um homem armado. No percurso o meu acompanhante diz-me estar cansado de levar pessoas à casa de banho. Esta era a sua tarefa principal. “O senhor que é da casa, sabe onde é a casa de banho” ? Eu disse que sabia. Aqui à esquerda há uma casa de banho, é só descer este corredor e pronto. Ele disse, “então se o senhor sabe vá lá, eu fico por aqui.” E ele ficou ali estacionado no átrio do estúdio. E eu fui. E claro que ao invés de virar à esquerda eu virei à direita, para as escadas de acesso ao rés do chão. Desci na maior das calmas. As pessoas que me conheciam perguntavam, “João, já vais?” Respondia que “não, venho já. Vou tomar banho.” Não voltei mais.
NATAL NA PRISÃO
Por conta de ter estado no interior do RCM no dia 7 de Setembro, fui preso a 20 de Dezembro. Fiquei numa cela com mais 4 pessoas. Durante uma semana nenhum dos presos teve direito a qualquer visita. Passei o Natal de 1974 na prisão. No dia 27 de Dezembro fomos autorizados a sair da cela, para nos encontrarmos com os nossos familiares. Naquele dia foram visitar-me o António Alves da Fonseca e os meus dois irmãos. De repente um oficial aproxima-se e pergunta-me: “o senhor é que é o João de Sousa?” E eu sim senhor. E ele, “pode acompanhar-me ?” Entrei numa sala e fui recebido por Jacinto Veloso. Olhei para ele. Eu sabia que ele estava na Comissão Militar Mista. Ele disse, “olá! tudo bem? Senta-te.”
Mostrou-me um álbum de fotografias enorme. E disse, “vai dizendo quem é que tu conheces daqui.” Eram centenas de fotos de pessoas que estavam do lado de fora do edifício do RCM nos dias da manifestação. Percorri o álbum de ponta a ponta. Disse-lhe que não conhecia ninguém.
Passados 15 minutos ele perguntou-me: “onde é que estão as tuas coisas? A tua roupa?” Eu disse, “estão num saco na cela”. Ele mandou o funcionário ir buscar e depois disse, “podes ir embora, estás livre.” Eu perguntei, “posso ir embora?” E ele, “podes.” Insisti: Eu quero um comprovativo que me diga que eu não tive nada a ver com esse “Movimento de Moçambique Livre”. “Vai, que a carta virá depois” – disse-me Jacinto Veloso.
Felizmente, dias depois enviaram para o RCM uma carta informando que eu poderia retomar as minhas funções. Eu ainda hoje guardo religiosamente essa carta. No dia 28 de Dezembro de 1974, depois duma prisão de 7 dias, retomei a minha actividade profissional.
Meses depois deixei a Golo para passar a ser “locutor de segunda classe do Rádio Clube de Moçambique”.
OBS: Este depoimento foi publicado no livro “Mafalala 1974 – A Grande Operação” de autoria de Aurélio Le Bon.
João de Sousa – 07.09.2019
8 Comentários
José Abílio Mourato
Faz hoje precisamente 46 anos que se deu o 7 de Setembro de 1974. Também o vivi com ansiedade como tantos outros mas por razões mais sui-generis: Estava no Parque da Gorongosa, no Chitengo à espera de avião para regresso à Metrópole depois de ter sido despejado, como militar, em Moçambique, mobilizado para uma guerra que tinha um fim mais que anunciado para que o antigo regime nos conduziu, ceifando cerca de 9.500 vidas e gastando os parcos recursos em tamanha odisseia, em 3 frentes de guerra com áreas sem fim para controlar, faltando por isso cá na Metrópole as coisas mais básicas como sistema de reformas, Serviço de Saúde, Educação etc. Estive primeiro em Tete a defender a Cabora Bassa num local do fim do mundo chamado Chipera, onde tivemos 5 mortos e dezenas de feridos, com um sofrimento atróz durante 2 anos Esses senhores bem instaladinhos nas grandes cidades perto das imperiais e do bom camarão e com carradas de criados pretos como mainatos, fingiam desconher o que se passava lá pelo Rovuma e pelo Zambeze, dizendo que a guerra não passava de um grupo de bandoleiros de delito comum. Falam da descolonização “exemplar” com aspas, mas eu que sei do que falo e chamo-lhe exemplar sem aspas. Com o poder caído na rua e com os militares exaustos de uma guerra fraticida, mais ninguém quiz fazer fosse o que fosse para aguentar um regime em agonia por causa, essencialmente, da aventura guerrista no Ultramar, onde todos os países europeus compreenderam a tempo os ventos da história e deram a independência às colónias antes dos povos pegarem em armas, com negociações em clima de paz e acautelando o regresso dos compatriotas aos países europeus e mantendo lá os seus interesses e o seu Know how para ajudar a criar raízes os jovens paises independentes. Compreendo o sofrimento dos que tiveram que sair com a mobilia às costas, que estavam lá com boas intenções mas não atirem isso à cara dos que tiveram que fazer a descolonização “exemplar” porque ela não podia ter sido diferente naquelas condições em que o poder estava na rua, os militares cansados e em perigo recusavam-se a combater e a Frelimo, sabendo da nossa fragilidade do momento, redobrou esforços de guerra e começou a metralhar autocarros e outros transportes às portas das grandes cidades como a Beira, situação que nunca se tinha verificado porque pensaram que depois de 14 anos de guerra é agora ou nunca. Basta dizer que naqueles 6 meses entre Abril e Setembro morreram 6 vezes mais compatriotas nossos em emboscadas do que em iguais períodos de guerra rotineira. Um dos nossos mortos foi-o em 24 de Abril de 1974, o saúdoso João Gonçalves um soldado que era de cor mas estava ao nosso serviço.
Quando se fala por aí nas lindas cidades com milhares de edificios de nível europeu que lá deixámos, como em Lourenço Marques Beira, Nampula etc. convém lembrar que tambm lá deixámos 10 milhões de palhotas e 95% de nativos analfabetos. Tudo isto em 500 anos. Quando assentar o pó das emoções e que deixe de haver pessoas que viveram esta odisseia da mobilia às costas, hão-de ver que a história irá registar o facto como sendo descolonização exemplar, sem aspas!!!!
Luis Bento
Neste dia regressava da beira com o meu camião. Parei nas Palmeiras para almoçar e também la estavam 4 colegas. Arrancamos ao mesmo tempo para Lourenço Marque e nada sabíamos dos acontecimentos. Eu ia á frente e mais atras os outros colegas. Passei por Benfica e reparei num movimento ja fora do normal. e pelo espelho vi o outro colega e nada mais. No outro dia vim a saber que o 3º 4º e 5º foram apanhados com paus na estrada e … as cabeças cortadas e penduradas em paus, postas á borda da estrada. Escapei por segundos. Mas nada me vale contar esta situação, pois os cobardes responsáveis, morrem numa cama de hospital com todas as mordomias! Agora o que me irrita, é ver esta gentalha europeia, a mandar medicamentos e dinheiro para ajudar as vitimas das cheias e nem vão ver para onde vai esse dinheiro e os medicamentos que são vendidos a preço de ouro. Cambada de imbecis.
Manuel Martins Terra
Tal como disse e bem, o meu amigo José Carlos meu vizinho e grande amigo de infância,que trabalhamos juntos no Jornal Diário, e eu corroboro sem reticências, que faltou a Moçambique um politico com a grandeza e carater de Nelson Mandela , capaz de manter a coesão da simbiose de culturas que perfumava a sociedade mocambicana. No entanto é justo salientar o esforço de dispendido por um jovem moçambicano de seu nome Eduardo Mondlane , mandatado por todos os movimentos nacionalistas que preparavam a ofensiva militar contra a politica ditatorial de Salazar, para se evitar a guerra colonial, no sentido de Portugal ser exemplar na história dos países europeus que descolonizaram as suas colónias. Salazar não quis ouvir o então estadista da ONU, Eduardo Mondlane que tinha um visão politica capaz de conduzir a Guiné Bissau, Angola e Moçambique a um futuro promissor. Infelizmente assim não sucedeu , com ae consequências por todos nós conhecidas. Mondlane poucos anos depois viria a ser assassinado na sua casa em Dar es Salaam, em condições ainda hoje pouco esclarecidas. Por sua vez o governo que resultou da queda do regime em Portugal, também tem culpas no cartório, no que se está a passar nos lusófonos , acima citados porque jamais alguém consegue arrumar as casas dos vizinhos,coma sua em estado de sítio. Portugal deveria optar numa primeira fase, por um plano de entendimento com os governos africanos no que constituiria uma autodeterminação limitida e posteriormente criar as condições para que tudo correse ordeiramente e que as suas colónias tivessem o espaço no tempo para proclamarem as suas legitimas independências.
Assim não aconteceu e o resto é o que todos sabemos.
Katali Fakir
https://youtu.be/yjdKQFE5KTU
Outra versão dos mesmos factos e narrativas históricas, de que lado está a razão. A verdade insofismável foi que cidadãos moçambicanos de todas as raças, religiões e ideologia politica foram vítimas injustas de uma estúpida confrontação de ódios promovidos por ideologias extremas quer comunistas como coloniais. O que importa hoje estar a chorar lágrimas de crocodilo se quem ficou devia ter vergonha por conseguir levar um Povo fantástico a povo dos mais corruptos do mundo que, como aquela canção que num verso diz que “os loucos de Lisboa fazem acreditar que a Lua gira ao contrário”, fazem-nos fantasiar a ilusão que o “colonialismo” seria melhor ter continuado…
Rogério
Na realidade dos cactos insofismaveis, tudo foi feito da maneira que ocorreu e proposital mente. Claro, que quem estava no meio dessas ações, independentemente se da esquerda, ou direita, queria o melhor. Só que o “melhor” de cada um era diferente. O tempo mostrou alguns que se beneficiaram. Outros, que se ferraram. Para o nem de uns, outros se danam… sempre foi assim. Só que geralmente bens materiais, têm “vida-útil”, então, quem se beneficiou, na maior parte o benefício… acabou! Foi melhor… foi pior? Cada um que se ache, mas uma coisa tenho certeza… plena e indiscutível… PODERIA TRR SIDO MUITO MELHOR PARA TODOS! Menos pros que vieram e se aproveitaram da situação, é óbvio! E alguns são heróis ainda… kkkkkkkkkkk…! De minha parte, hambanine… kanimambo! Foi bom enquanto durou! Hj, valores mais altos se levantam. Como “colonialista” sai com a roupa do corpo… e isso me alegra bastante, podem acreditar! Consciência tranquila se chama a isso… kkkkkkk
Armando
Tive vários episódios nesse dia e seguinte, mas não estou agora, com disposição de os contar.
Noutro dia talvez.
Desculpem.
Jose Carlos
Eu trabalhava no jornal “Diario” e fui fazer, nessa tarde, a cobertura do jogo de futebol Sporting Nova Aliança, salvo erro, em juniores.
Não houve os” maus” e os “bons”, como sugere João de Sousa. A versão de João de Sousa é a versão oficial,mas muito simplificada, dos acontecimentos. Simplesmente, o poder revolucionário que na altura conquistou o poder teve uma posição ditatorial, de autentica tirania, e não admitia pontos de vista diferentes dos seus. Era tudo “fascista” e “colonialista”,lembram-se perfeitamente…
Ocorreu, então, a primeira divisão entre moçambicanos. Muitas mais sucederam até hoje,quase cinquenta anos após a independencia de Moçambique, com muito sangue derramado,guerra civil, três acordos de paz, uma elite corrupta que despreza completamente o povo moçambicano.
O papa Francisco denunciou tudo isto na sua visita a Mocambique.
O que vai na alma é interminável mas vou terminar dizendo que faltou a Moçambique um homem da categoria de Nelson Mandela…
ruivbaptista@sapo.mail
Terminou o seu comentário com uma grande verdade que subscrevo, citando-a: (…) faltou a Moçambique um homem da categoria de Nelson Mandela…)