“JÁ TIVE UMA FAZENDA EM ÁFRICA”
“Aqui nunca tive uma quinta”…. Mas em Moçambique já tive uma fazenda!”.
Foi minha até 1975. E ainda hoje, passados mais de 46 anos, sinto saudade e orgulho em contar aos meus amigos, o tempo que passei a cuidar dela!
Para a percorrer não podia ser a pé. Tinha uma área enorme. Está inserida no sul de um país com cerca de 802 mil km2. Era limitada a norte pelos bairros da Costa do Sol, Mahotas e Infulene. A sul e este: por uma baía que chamavam do Espírito Santo. Com uma grande extensão de praias e uma marginal donde dava gosto ver o pôr-do-sol. A oeste confinava com as lindas vilas da Matola e Machava.
Tenho de vos dizer que, pela sua extensão, não foi só minha! Possivelmente também foi tua ou sua, e de centenas de milhares de moçambicanos, “luso- moçambicanos” e até sul-africanos! Que pelas suas praias e gastronomia gostavam de lá ir passar férias.
Nunca tive o trabalho de plantar árvores de frutos. – Os cajueiros, coqueiros, as mangueiras, bananeiras, papaieiras, e… outras, eram uma dádiva da natureza!
Mas o seu feitiço estava no interior: – Largas avenidas geometricamente traçadas, com edifícios modernos; passeios largos com acácias; praças e jardins floridos e bem cuidados. Tudo arquitéctonicamente desenhado. “Fervilhava” com centenas de pessoas num constante movimento de vai e vem, que causava inveja em toda a África.
Para a manter sempre limpa e asseada todos trabalhávamos com alegria, porque era a “nossa Fazenda!” Ali cultivávamos a amizade, o respeito e a fraternidade. Era por isto que, perante o mundo, tínhamos uma postura de vida diferente, e que até hoje ainda causa inveja!.
De tão bonita e cuidada que era, alguns cantores e trovadores dedicaram-lhe versos e canções!
Não precisei de a baptizar. Quando em miúdo a herdei, já outros lhes tinham posto os nomes de: – Baía da Lagoa (Delagoa Bay); Xilunguíne; Cidade das Acácias; Pérola do Índico….ou se quiserem, simplesmente: – Lourenço Marques.
Com grande mágoa minha, quiseram uns militares e uns políticos aprendizes, que desde princípios de 1975 deixasse de cuidar dela! O país aonde estava inserida ia ser entregue a guerrilheiros e políticos (?) de baixa formação, que não me ofereciam garantias de nada. Como depois confirmei! – Com assassinatos de companheiros da guerrilha e outros. Perseguição a quem não comungasse com as ideias do partido no poder. Criação de campos de concentração e reeducação. Proibição da livre circulação de pessoas e bens sem autorização dos comités de bairro. Barreiras à liberdade de expressão e reunião, assim como à livre economia de mercado. Nacionalização das casas e propriedades dos moçambicanos e residentes. Atribuição de senhas de racionamento para aquisição dos bens de primeira necessidade nas cooperativas de consumo, e… outras!
Por tudo isto começou uma guerra civil no centro do país. Que depois de uma acalmia feita por uns acordos de paz que nenhuma das partes cumpria, voltou agora muito mais agressiva e alastrou ao norte, na província de Cabo Delgado. Onde moçambicanos continuam a matam moçambicanos.
Foi por isto que muitos dos que saímos resolvemos nunca mais voltar! A alguns dos que ficaram a cuidar da “minha fazenda” e por troça e escárnio, em escritos e artigos de opinião, ainda hoje teimam em nos alcunhar de “retornados colonialistas”, quero dizer-vos que nada temos de comparável com os verdadeiros colonialistas. Não colonizámos, não roubámos nem delapidámos o país, porque por adopção também era nosso! E em nada contribuímos para a crise económica, social, política e militar que vocês hoje vivem. Essas responsabilidades têm de ser pedidas aos vossos políticos e a outros, e não a nós!
Porque este artigo não é nenhum tema tabu. E se por emoção e tristeza,
“ …. tu sorriste e sussurraste, sou da mesma terra que tu ”!!
Para nós com o BigSlam, o mundo já é pequeno… Muito pequeno!
João Santos Costa – Julho de 2021
17 Comentários
Maria Raposo
Que texto lindo que nos enche a alma! Obrigada por mais este que nos habituou a usufriuir, vê-se que foi escrito com muita emoção e sentimento. Todos nós cuidámos da nossa Machamba, enquanto pudemos e foi com muita amargura que a deixámos, mas uma coisa +e certa, trouxemo-la no nosso coração até ao ultimo dia das nossas vidas! OBRIGADA
alberto@desousacosta.com
Kanimambo.
Manuel Martins Terra
Caro amigo João, fantástica a forma como tratas a tua fazenda, aquela terra que todos nós cultivava-mos com carinho e orgulho, como testemunho de gratidão aos nossos antepassados que a regaram com muitos suor, configurando-a com uma das mais belas de África Austral. Todos os rebentos eram bem sucedidos, e cada semente do “embrião” do progresso, acontecia algo de novo naquela fazenda. As suas raízes proporcionavam-lhe o crescimento , e com ele a nossa vivência marcada pela pela amizade e pelo respeito por quem tinha o dom da sabedoria. Daquela fértil fazenda, todos nós esperava-mos produzir cada vez mais, até ao dia em que os fazendeiros vindouros intitulados de progressistas, começaram a deixar secar a verdura e a esperança da machamba, que num ápice foi sendo atacada por ervas daninhas, criando apenas os seus ricos quintais, deixando para o seu povo terra queimada, que mais não produziu do que fome e miséria à nação moçambicana.
Da nossa parte, só nos brota a nostalgia de termos pisado aquela terra encantadora, que preencheu os nossos sonhos e ainda hoje fortalece a nossa paixão africana. Um abração, João.
José Gonçalves
Que descrição tão nostálgica e bela da tua fazenda, João. Conheci-a muito bem. Era linda, incomparável, única. Dói-me a alma que aqueles que dela ficaram a “cuidar” não estivessem á altura da missão. Deixaram-na degradar mas, mesmo assim, não lhe apagaram os traços da beleza, que só ela tem. Noto nas tuas palavras a tristeza e a amargura de uma profunda saudade de um tempo já longínquo. Estás longe de ser o único.
Muito obrigado por esta pérola.
Um abraço.
Ernesto Silva
Mais um belo trabalho João. Obrigado e continua com esses teus registos, são muito importantes para as novas gerações que não tiveram o privilégio de viver África no seu tempo de criança, pelo menos ficam com uma ideia de como foi maravilhosa a juventude dos seus antepassados.
Vasco Pinto de Abreu
Obrigado João, também vivi e cuidei dessa machamba, enquanto me deixaram! Belo artigo, que te agradeço…grande abraço
Esperança Marques
Obrigada João. Que linda descrição faz de Lourenço Marques. Palavras exatas descrevem como era a sua (nossa) fazenda, com um carinho sincero e uma dorzinha pela perda do contacto diário que tinha com ela , penso eu, e lhe preenchia algum tempo livre que tivesse da melhor maneira para o seu coração, e com muita alegria. É muito lindo o que passou para o papel, as lágrimas correm pelo rosto numa grande comoção. Temos João, aquilo que poucos conseguiram ter, e uma história linda que vivemos em toda a nossa juventude. Temos recordações, diria, quase únicas, perante tantos milhões que nada apreciaram, não viveram, não têm nada para contar, estão ocos. Se estamos tristes, são as nossas memórias que nos ajudam a ultrapassar todas as mágoas porque são um valiosíssimo tesouro, que só a nós pertence. A Fazenda continuará a ser de todos nós. Isso é que importa. Um beijinho João, parabéns pelo artigo. Até sempre.
Vitor Neves
Caro João, obrigado por este maravilhoso artigo, o que mais posso descrever, nada mais, é isto o que nós Moçambicanos e não só, revivemos com muita SAUDADE, os belos momentos da nossa vida ali passada, naquela Machamba, Fazenda, a beira mar. João um grande abraço amigo.
Nuno Tristao da Silva
Estimado Joao Santos Costa :
Embora assiduo leitor do BigSlam, é a 1ra vez que intervenho porque voce o merece.
Felicito-o pelo que acabo de ler, produto duns minutos de inspiracao, em que disse tanto e tanto com poucas palavras que ninguém pode refutar..
Bem haja.
Receba um cordial abraco
Antonio G. Silva
Caro João, mais um dos teus bons artigos, que podertiam ter sido escritos por milhares de amigos nossos. De facto, fomos tratando da fazenda introduzindo, aqui e ali, melhoramentos a proporcionar melhores condições para a nossa vivência, bem como aos vizinhos que, com muito gosto, entravam pela casa dentro.
O vídeo, bem a propósito, com música e letra a condizer, foi-nos transportando pelas fazendas, recordando-nos o imaginário que nos acompanhará sempre das nossas vidas em África.
Pena foi que, por ignorância ou ganância de quem nada percebia ou não tinha sequer a noção da dimensão das mesmas, destruiu as melhores fazendas que se possam imaginar.
Já lá voltei 2 vezes e ainda senti alguma da paixão que sempre tive por Moçambique, mas nunca será a mesma coisa! Nunca mais!
Obrigado João. Um forte abraço.
jfroisf@hotmail.com
Do João Santos Costa recebi uma mensagem privada aconselhando-me a leitura desta publicação. Fui indelicado na resposta, mas por insistência sua resolvi vir aqui ao Big.Slam e… foi uma surpresa. Gostei muito da “fazenda” de onde me pus a andar há 21 anos porque não tolero ignorantes, ladrões e assassinos ! Tenho dupla nacionalidade (luso-moçambicana) por direito próprio e revolta-me que a minha verdadeira terra continue nas mãos de biltres criminosos e ladrões sem escrúpulos!
Dulce Gouveia
Parabéns João pelo excelente artigo com o culminar do vídeo onde a música e a respectiva letra dançam tão bem com as imagens.
Esta quinta continua a existir no nosso imaginário e nos nossos corações e, por isso, nunca nos poderá ser roubada, ficou gravada no tempo onde poderemos visitá-la sempre que nos aprouver…..
Kanimambo
João Mendes de Almeida
Pois, João, todos nós cuidámos da nossa fazenda enquanto nos deixaram. Agora vertem “lágrimas de crocodilo”…já é tarde!
Parabéns por mais este artigo que diz exactamente o que todos pensamos. Grande abraço
António Mendes
Excelente artigo, o qual subscrevo integralmente. Parabéns, bem imaginado.
Quim Pereira
Pois é. Mais um excelente trabalho. MAIS UM!!
No início esta a achar um exagero (802.000 m2…) ???
Admiti a hipótese de confusão (erro!), mas à medida que se foi desenrolando a narrativa comecei a “ver” ao que te referias!!!
Os meus parabéns, amigão!
Pinto
Maravilhoso artigo. Kanimambo!
Wanda Serra
Joao mais um maravilhoso artigo que tanto me emociona.
A nossa unica linda machamba que sempre nos pertencera…. Sempre!!
Obgda Joao
Beijinhos