O fim do Império (2ª parte) – Olá Lisboa
Foi há 50 anos !
E o Rodrigo, meu sobrinho-neto, não se esqueceu do que lhe prometi!
“O Tio já me contou que saiu de Lourenço Marques com a “queda do nosso Império”. Mas ficou de me contar a “odisseia” da sua chegada e o princípio de vida aqui, em Lisboa!”
Rodrigo:
Dizem que o tempo apaga tudo. O tempo não apaga, apenas adormece.
Mas há passagens na nossa vida que o tempo nunca apaga nem adormece.
Permanecem na memória!
Vou contar o que me pedes, porque o “calvário” da minha “odisseia” foi também o de muitos milhares de homens e mulheres vindos do ultramar a quem, às vezes, com alguma indelicadeza nos chamavam retornados.
Depois de todos estes anos a minha “ferida de retornado” já está cicatrizada. Mas fiquei surpreendido, porque não contava ver a violência das recentes manifestações de moçambicanos, que já originaram centenas de mortes. Recordando o que vivi no 7 de Setembro de1974 de tão má memória e que deixaram o país a “ferro e fogo!”.

Foto de Siphiwe Sibeko
O partido que desde a independência tem governado o país, deveria justificar aos moçambicanos porque é que as forças da “ordem(?)” estão autorizadas a atirar a matar, causando mais de três centenas de mortes nos manifestantes indefesos. Quando existem outros meios de os conter!
– Rodrigo, naquele princípio de 1975, em que Moçambique ainda era uma província portuguesa já era difícil arranjar lugar nos aviões da TAP para Lisboa. E para podermos sair era exigido um documento das finanças, quase sempre só conseguido por influência de amigos, em como não deixávamos dívidas no país.
Saímos de Lourenço Marques com o habitual calor de Verão, vestidos de acordo com essa estação. Quando chegámos ao aeroporto de Lisboa recebemos um choque térmico. Aqui era Inverno e estava um frio de “rachar”! Mas não demos parte de fracos, como vínhamos de África suportamos o frio.
Perdidos no aeroporto, valeu-nos um assistente que nos encaminhou para uma agência bancária do BNU, para trocarmos até cinco mil escudos moçambicanos (25 €) por escudos portugueses.
Os escudos das províncias ultramarinas não tinham cotação universal e ninguém os aceitava. Chamavam-lhe dinheiro “macaco”!
A partir de Abril/Maio desse ano, com o afluxo de milhares de pessoas que sem meios de subsistência chegavam continuamente dos territórios do ultramar, a situação sócio/económica neste país começou a degradar-se e a entrar em rotura.
O governo, ao ver a situação de desespero dessas pessoas teve de criar, também por pressão da opinião pública, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN) com a sede na Junqueira junto a Algés. Mas que depois teve de descentralizar e estender pelo país.

Traziam o que podiam. Alguns só com a roupa do corpo.
Alguns políticos, e portugueses “vendidos” à Frelimo, mesmo vendo o que se estava a passar, teimavam em negar a realidade! Diziam que a descolonização estava a ser “exemplar”.
Os países da Europa Ocidental, América e Canadá entre outros, ao constatarem que, ao contrário do que era dito, a descolonização nada tinha de “exemplar”, e que Portugal estava numa situação dramática, decidiram com ajudas, apoiar o país.
Ainda me dirigi uma vez ao IARN na Junqueira, para ver que apoio podia solicitar. Quando lá cheguei ao ver o “mar de gente” sem meios de subsistência, com necessidade de ser realojada nos hotéis e pensões disponíveis, e como eu estava com apoio de familiares voltei para trás, e não solicitei nenhum tipo de ajudas.
Por sorte, muitos dos que chegavam também contavam com assistência de familiares.

Este era o pedido feito pelos “Retornados”
Rodrigo, ao princípio a minha adaptação a este País não foi fácil! O “modo de vida” era diferente da que tinha em Lourenço Marques. E com a chegada dos “ultramarinos” as ofertas de trabalho, também por imposição das comissões de trabalhadores das empresas, eram escassas. Por isso estava a pensar emigrar para a África do Sul, ou até para o Brasil!
Mas ainda tinha uma réstia de esperança em organizar aqui a minha vida porque tinha concorrido ao ensino! E foi por isso que a tua tia também se opôs frontalmente a sair deste País.
Enquanto não arranjávamos ocupação; para se “passar o tempo” a recordar Moçambique e saber novidades pelos que vinham chegando, o nosso “Ponto de encontro” era o Café Gelo, na praça do Rossio.

Café Gelo no Rossio. Ponto de encontro dos “retornados” de Moçambique
Imediatamente a seguir à independência daquele país, não acreditava no que estava a ver! O meu amigo Zé Faísca, de quem já te falei no artigo anterior, estava ali com outro amigo, junto ao Café Gelo. Tinham chegado uns dias antes.
Porque eu estava ávido para saber novidades sobre a sua vinda e do país que ele chamava de “El Dorado”, fomos almoçar ali perto no restaurante Inhaca, nas portas de S.to Antão.
Contou-me que com aquele governo da Frelimo o diálogo era impossível. A situação estava insuportável, a insegurança era grande e até a relação e atitude dos seus empregados era diferente. E havia muitos portugueses que para caírem nas graças da Frelimo não passavam de meros denunciantes. “Moçambique era para esquecer”!
As reuniões com os “comités” e comissão de trabalhadores para receberem ordens, eram constantes. As contas bancárias eram vigiadas, os levantamentos estavam condicionados e tinham de ser justificados. Tudo funcionava em função do preço que se podia pagar. Entrou-se no “mercado negro da compra de moeda estrangeira” por qualquer valor!
Ao aperceber-se disto, até a situação em Moçambique normalizasse, mandou a família de “férias” para aqui.
Passado pouco tempo foi alertado por um amigo da repartição de finanças para sair rapidamente do país pela calada. Porque ele tinha retido na gaveta da sua secretária, aguardar despacho, uma queixa feita cobardemente pela da comissão de trabalhadores e comité de bairro, para lhe ser feito um interrogatório. Estava a ser acusado de sabotagem económica por ter movimentado a conta bancária sem autorização, para mandar a família de férias.
Nós aqui também sabíamos que essas acusações eram feitas aos empresários, para os oportunistas sem escrúpulos e as comissões de trabalhadores lhes confiscarem os bens.
Como este meu amigo seguiram-se milhares que saíram e ficaram sem nada! Porque o governo português não os protegeu juridicamente, nem tomou medidas de apoio.
Estes e outros procedimentos fazem parte da página negra de Portugal e também da história de Moçambique.

Abandono das antigas províncias ultramarinas. Os seus bens ficaram lá!
Aqui o tempo passava lentamente com a “guerra verbal entre os partidos políticos” nos comícios e na Assembleia Constituinte.
Os administradores e directores das empresas estavam com o poder decisório limitado pelas comissões de trabalhadores manipuladas pelos sindicatos que só admitiam quem eles seleccionavam! Diziam que os retornados lhes vinham “roubar” os poucos empregos existentes. Por isso eu e muitos outros, não tínhamos respostas das empresas. E as poucas que recebíamos eram: – “Que as admissões estavam canceladas, para aguardarmos nova oportunidade”!
A situação ainda se complicou mais, quando os meios de comunicação começaram a publicar notícias sobre a mais-valia laboral dos retornados!
Passados tempos eram notícias destas que a imprensa dizia em Portugal
Como na função pública ninguém me perguntava donde vinha, concorri ao ensino e fui colocado em Setembro desse ano.
Tempos depois de ter iniciado a actividade docente recebi propostas de algumas empresas, todas para fora da zona da grande Lisboa.
Como já tinha a vida aqui organizada, recusei. Ainda bem! Porque o tempo e a experiência demonstraram-me que estava certo!
A docência ensinou-me a lidar com um “mundo” que para mim era novo! Estava sempre aprender para transmitir conhecimentos. Desafiou-me a investigar conteúdos que de outro modo teriam ficado esquecidos. E a capacidade de transmitir esses conhecimentos a jovens com diferentes níveis de aprendizagem e de diferentes extratos sociais.
Depois disto passou a ser a minha paixão.

Na sala, numa aula expositiva de uma turma do curso complementar
Rodrigo há um provérbio que diz: – “Se Deus te ajudar, ri-te dos Anjos”.
Como me ajudou, quando penso nos “Anjos” administradores, directores e comissões de trabalhadores que na altura me recusaram, sorrio!
Sinto-me realizado porque ajudei a formar académicos/doutorados que dão vida e este e outros países!
“O Tio tem contactado o seu amigo Zé Faísca?”
– O Zé era natural de Loulé onde tinha/tem familiares, e foi viver para lá. Esporadicamente íamos telefonando!
Era um fumador altamente viciado. Estava sempre “com o cigarro na mão”.
Soube por um amigo comum que teve um grava problema de saúde e não conseguiu recuperar!
Do seu irmão perdi o contacto, mas sei que estava também em Loulé.
Às vezes conto ao meu “travesseiro” o que foi a minha mocidade em Lourenço Marques. Ele fica “cheio de inveja” da vida e liberdade que tínhamos!
Com o Zé, entre tantas outras, as voltas que dava na sua “Honda 50”, a nossa ida à Ponta do Ouro já aqui descrita no dia 4-Fev-2019 com o título: “A Ponta do Ouro dos 7 magníficos”,
Rodrigo, não quero deixar de prestar novamente o meu tributo à BELITA (Anabela Costa) pelo lindo arranjo fotográfico sobre Moçambique que fez há muitos anos, a partir de uma linda música do saudoso Carlos Paião. Ainda hoje quando a ouço sinto saudade do tempo que passei naquele país.
“BELITA, agora envio os meus agradecimentos para o CÉU onde repousas junto do teu marido”.
Para nós, com o BigSlam, o mundo já é pequeno… Muito pequeno!
João Santos Costa – Março de 2025
9 Comentários
Ruy Zibreira
Bem narrado…foi assim mesmo…acabo por nao saber quem mais perdeu : nos os moçambicanos (aqueles que a freliXo nao quiz e expulsou duma maneira ou doutra) ou os moçambiqueses (aqueles que a freliXo pariu e criou com a “independencia”). No que me diz respeito, e pela Graça de Deus, apos o choque de ter de abandonar a MINHA terra natal, tudo me correu MUITO BEM.
Kanimambo a Moçambique por me ter servido de berço !!!
Victor Pinho
Obrigado João Costa pelo relato de uma descolonização dramática e vergonhosa e a vinda de milhares de portugueses que tinham feito toda a vida em Moçambique e que pensavam que iriam viver sempre nesse território. Foi um choque terrível e que foi feito com o abandono dos portugueses ás mãos da Frelimo sem qualquer proteçãp de seus haveres e das suas vidas. Muitos tumultos, mortes e chacina de portugueses sem que houvesse alguém em Portugal preocupado com a situação que se viveu após a independência e especialmente depois do 7 de Setembro que foi o escalar da perseguição ao branco pelo negro. Período negro da história de Portugal e que será sempre uma ferida aberta para todos aqueles que puderam fugir de Moçambique e refazer a sua vida quer em Portugal quer noutros países para onde foram viver tendo triunfado com todo o seu esforço e dinamismo empreendedor. Podemos orgulhosamente dizer que contra todas as dificuldades que nos foram impostas VENCEMOS e nos orgulhamos pela transformação de Portugal teve com a vinda dos chamados Retornados. Um abraço
Manuel Martins Terra
Caro amigo João, o fim do Império que culminou com a descolonização das antigas colónias portuguesas em África, marca o regresso maciço de milhares de “retornados” para muitos um novo país, deixando para trás toda um vida de trabalho e apostas numa terra que pensaram também ser sua, arrastando com isso traumas emocionais difíceis de se superarem. A nossa integração aqui em Portugal,como se sabe nem sempre foi fácil e sobretudo para aqueles que perderam tudo, mas com a sua resiliência e vontade férrea iniciaram um novo percurso,criando os seus próprios negócios e souberam vencer desafios que se lhes colocavam.. Temos conosco o orgulho e hoje reconhecido pela sociedade,de termos contribuido para a construção de um país mais moderno e diversificado e o enrequecimento da cultura portuguesa, graças as influências que transportamos daquela terra que não conseguimos esquecer. Muito mais haveria para dizer e certamente páginas para encher, mas fico por aqui. Um abraço do amigo Manel.
José Augusto Salta Moreira
Obrigado pelo texto que abordou os problemas que os que regressaram a Portugal tiveram que vencer. E fechou com chave de ouro o seu relato, com esta bela canção , sem esquecer que é triste partir sem voltar. Que saudades!…
Carlito
Intressant conteúdo, cheguei a Lisboa com 18, dormi uns dias no aeroporto até ter lugar num dos alojamentos do iarn pois não tinha família em Portugal 🇵🇹 ou seja, nascidos na metrópole , passei por tudo e mais alguma coisa tanto em Moçambique como em Portugal, após a minha chegada. De 76 a 81 tentei a minha sorte várias vezes por fora, desde vindimas a tripulante de navios, até me estabelecer na Suécia 🇸🇪 onde fiz/faço está a minha terra. Nem saudades de Portugal e muito menos Moç não é a terra q me viu nascer q me toca no peito mas sim a terra q “me vê viver”, essa sim é a minha terra. Com todo respeito ✊
Orlando Valente
Grande amigo JOAO SANTOS COSTA.
Andamos juntos a remar dentro do mesmo “bote”… mas por muito que rememos, nao saimos do mesmo sitio…e precisamente e apos 50 anos ja passados o que aconteceu connosco, sim, sao SAUDADES, SAUDADES e quando depois voltamos a realidade, as SAUDADES voltam … assim vamos vivendo. Joao Santois Costa, dissestes tudo sem sairmos do mesmo sitio… Os poemas que dedico a Mocambique escrevo-os do coracao, em poesia, nunca fui poeta, mas desabafo as saudades que sinto do MEU PAIS. Obrigado pelo texto e fotografias.
Orlando Valente
Raul Almeida
É sempre bom ouvir estas histórias.
Obrigado João
Grande abraço
Luis Russell Vieira
Aeroflot, única alternativa disponível. Maputo – Beira – Yemen do Sul – Cairo – dois dias em Moscovo – Luxemburgo – Lisboa – 1200 escudos recebidos do IARN (um sincero obrigado) – Carrazeda de Ansiães. Junho de 1977, depois de ter sido expulso da minha terra natal, com 12 anos de idade, pelo mesmo grupo que pratica os conhecidos atos contra a sua própria população, conforme descrito pelo João Santos Costa.
Também nunca mais voltei, nem voltarei. Solidariedade e sorte para o povo irmão de Moçambique.
Kanimambo e hambanine.
2luisbatalau@gmail.com
MAGNÍFICO TEXTO. NA ALTURA EU E A MINHA MULHER COMO TINHAMOS NASCIDO EM MOÇAMBIQUE, ALÉM DOS DOCUMENTOS OBRIGATÓRIOS QUE TINHAMOS QUE APRESENTAR, FOMOS OBRIGADOS A ASSINAR UM DOCUMENTO EM CMO NÃO VOLTAVAMOS A MOÇAMBIQUE. E NÓS “CUMPRIMOS”. NUNCA MAIS VOLTÁMOS. HAMBANINE. KANIMAMBO!