A Baixa citadina de LM
É de Lourenço Marques, bela a todos os títulos que guardo muitas recordações, e que por alguma razão embebia os seus habitantes de forma cativante, quiçá pela forma apaixonada como viam crescer a sua cidade.
Conquistada ao mar e ao mato, depois de vencida a zona pantanosa, com a Praça 7 de Março a coroar a ambição dos seus fundadores, sempre laboriosos e ativos que não olhavam a esforços para avançar no terreno até chegarem aos lugares mais recônditos dos arrabaldes. Surgiria com reconhecida perspicácia o rompimento da Av. D. Carlos, que depois do derrube da monarquia viria a chamar-se Av. da República, artéria preponderante para a identidade da Baixa citadina, verdadeira sala de visitas que surpreendia os visitantes chegados à cidade. A grande artéria concebida amorosamente, foi rasgada a partir da atual rotunda luminosa e prolongou-se de forma crescente até à Estrada das Estâncias, com construção de traça invejável.
Foi companheira da barreira vermelha da Maxaquene, de quem se separou mais tarde após o rompimento da Av. Augusto Castilho, mas que nunca perdeu de vista em toda a plenitude do traçado a proximidade à zona marítima. Os trabalhos adivinhavam-se demorados tal a extensão do percurso alargado caraterizado por pavimentação macadame, e os pioneiros foram construindo habitações, vedadas de muros à sombra de eucaliptos de grande porte perfilados em áreas arenosas, que o cimento haveria de cobrir. Os ventos do progresso continuavam a soprar, e os armazéns e lojas comerciais perfilavam-se de forma ordenada tornando-se necessariamente imprescindíveis para a economia local, que crescia a um ritmo próprio de evolução.
A modernização da Baixa ia avançando e na periferia, ruas e travessas iam sendo rasgadas obedecendo a uma malha ortogonal de implantação organizada. As décadas 40/50/60, foram marcantes para a Baixa, que foi ganhando a referência que se previa e desejava para a cidade, e paulatinamente foi perdendo a sua fisionomia primitiva. A prosperidade era por mais evidente, e os primeiros prédios de linhas modernas foram sendo edificados, crescendo como árvores que se erguem procurando o seu espaço. Não nos esquecemos da imponência do(s) Prédio(s); Cardoso, Lousã & Antunes, John Orr’s Paulino Santos Gil, Náuticos, Fonte Azul, Rubi, que contrastavam de forma harmoniosa, com o esplendoroso Edifício dos Correios e Telégrafos, concluído em 1908,
e da antiga Repartição da Fazenda, construída em 1904, que passou em 1961, a Biblioteca Nacional de Moçambique.
No quarteirão seguinte, a Casa Coimbra (hoje desaparecida) o Edifício do Banco Nacional Ultramarino, a Minerva Central e o Hotel Turismo.
Dos primórdios do século XX, merece especial referência o grande edifício clássico, Pott,
concluído em 1903, ocupando uma larga faixa da Av. D. Luís, que infelizmente apresenta hoje uma imagem degradada, depois do incêndio que deflagrou em 1990, por causas ainda desconhecidas e ao que se sabe a demolição estará já a ser processada. O fim de uma verdadeira joia arquitetónica que fazia parte da história, e um marco da criação da Baixa.
Naturalmente que a Av. da República, se encontrava ainda ilustrada com muitos outras construções de renome. O que não sobejam dúvidas é que “o coração da cidade” estava estampado no cruzamento da Av. da República com a Av. Luís, onde se achavam os históricos Café Scala (hoje com área de utilização mais reduzida)
e o afamado Café Continental (hoje remodelado e constituído por livraria e área de restauração).
No final do quarteirão por debaixo do Hotel Tivoli, lá estava o Café Djambu.
No final de tarde e considerada hora de ponta, intensificava-se o trânsito automóvel com longas filas que desciam a Av. Luís, e lá surgia o popular polícia sinaleiro que no alto da sua peanha, num ritual de apitadelas e braçadas, executava na perfeição o “quarto de volta”, dando a sensação de arbitrar os movimentos de automobilistas e peões que por ali passavam.
Os laurentinos tinham como hábito depois do trabalho, irem dar a habitual voltinha à Baixa, e os seus largos passeios iam testemunhando o vaivém de gente que parecia indiferente ao sentido dos ponteiros do relógio. O Café Scala e muito mais o Continental, registavam as presenças costumeiras de frequentadores de longa data, que entre uma meia- de- leite e uma torrada, um café e uma nata, ou uma cerveja a acompanhar um prego ou um salgado, punham a conversa em dia em ambiente de animada cavaqueira. Nas esplanadas concentravam-se os que apreciavam o ambiente ao ar livre, mais convidativo a beber um copo e a relaxar.
Por lá passavam muitos turistas oriundos de todos os continentes, e era vê-los junto dos artesões locais que percorriam ininterruptamente as artérias da urbe, a adquirirem bijutarias e as tradicionais peças do conceituado artesanato africano.
Aprazível, tornava-se a passagem pela arcada do Prédio Náuticos, onde do interior da Poliarte, os discos de vinil difundiam os os melhores ritmos musicais da época. O estabelecimento também vendia obras literárias, representativas das melhores editoras.
Não muito longe, o Kalifa, um espaço requintado, com o seu interior à “média luz”, onde se podia ouvir música em tom agradável e aconchegar o estômago, mesmo nos primeiros instantes da madrugada. Lembro-me também dos tempos em que a juventude laurentina, se concentrava entre o passeio e as portas de entrada do Cine Teatro Scala, para assistir às matinés que decorriam nos períodos da tarde, especialmente reservadas a estudantes.
Ainda na Baixa, figurava outra sala de espetáculos, no caso o Cinema Avenida, próximo ao Restaurante Marialva. Na vertente do comércio, destacava-se pelo seu requinte o grande armazém do John Orr´s, sucursal da cadeia com o mesmo nome, de origem sul-africana, dotada de três pisos, contado o r/c. Tinha características de centro comercial, onde se poderia encontrar tudo do que melhor se vendia na velha Europa, mas que viria a fechar portas ao que creio no período pós-independência.
A Baixa citadina só perdia algum fulgor quando a luz do dia ia empalidecendo, dando lugar aos rasgos de néon dos reclames instalados por tudo quando era sítio, cuja luminosidade refletia uma simetria de cores que tornavam a noite mágica e sedutora.
Na década 70, a Baixa viria a engalar-se com a construção de um moderno arranha-céus, constituído por 33 andares, o maior de que há memória no então espaço português.
É com este retrato, que a Baixa citadina eloquente quanto baste, se ergueu dos aterros do começo do século XX, cresceu até às grandes obras que a modificaram conferindo-lhe um visual transcendente que todos nós que por lá passávamos não ficávamos indiferentes, e que fez parte dos nossos sonhos.
Manuel Terra – Novembro de 2021
- A maioria das fotos foram retiradas com a devida vénia dos blogs: The Delagoa Bay de António Botelho de Melo e do House of Maputo, a quem o BigSlam agradece.
9 Comentários
Augusto Rodrigues
Excelente trabalho da nossa cidade de Lourenço Marques.
francisco da costa
a minha maior consolacao e a riqueza que tenho no BAU das memorias sao aqueles que pensan como eu LAURENTINOS E COCA COLA de GEMA ate EUSEBIO era COCA COLA nunca mais voltou a LM especiarias de MOCAMBIQUE um grande abraco a todos
Tomané Alves
Amei! LM inesquecível e sempre para bem recordar! Kanimambão
Arnaldo Miranda
Obrigado, Manuel Terra! Belas recordações. Bem haja, BigSlam.
João Mendes de Almeida
Manuel Terra habituou-nos a estas entusiastas descrições da nossa cidade, que nos fazem ficar presos e lembrando com muita saudade a mais bonita cidade africana do seu tempo. Bem haja.
carla lopes
Sempre no coração, é uma cidade que não se esquece.
Antonio Almeida
Obrigado sr. Manuel por me fazer recordar mais uma vez esta linda cidade onde nasci e tantas recordações me trás. Obrigado
Sara Gani
Adorei recordar Lourenco Marques, minha terra natal, cidade linda. Quantas lembrancas
António Soeiro
Quantas recordações da mais bela cidade africana, a “nossa” Lourenço Marques pérola do Indico.