A reputação da Marinha Mercante na rota ultramarina
Portugal, aquele pequeno país disperso geograficamente e que dos nossos tempos de escola nos diziam estender-se do Minho até Timor, tinha no mar o seu maior aliado para a aproximação aos povos do Império Ultramarino.
Estávamos ainda no século XIX, quando os velhinhos navios a vapor fundeavam na Baía do Espírito Santo, sendo o transbordo dos passageiros para terra feito em barcaças, com a perspetiva da construção do Cais Gorjão no horizonte. A ponte cais começou a ser construída nos primórdios do século XX, e desde logo desempenhou um papel crucial estampado no desenvolvimento da jovem cidade de Lourenço Marques, e implicitamente na economia do território.
Esta fundamental infraestrutura portuária alavancou a importância do transporte marítimo para a região, levando a Companhia Nacional de Navegação e a British Índia Steam Navigation Company, a efetuarem carreiras regulares para a rota africana, utilizando numa primeira fase navios de passageiros e de carga. A Companhia Colonial de Navegação (CCN), fundada em 1922 em Angola, que estabelecia já ligações a terras de Vera Cruz, acabou por se tornar também concorrente e passou de igual forma a operar para Angola e Moçambique.
Houve então necessidade de acelerar a construção do Cais Gorjão, que no começo dos trabalhos se estendeu até à zona da Praça Mac-Mahon, de forma que os navios pudessem acostar e com segurança operar-se o desembarque dos passageiros.
Nas primeiras duas décadas do século passado, as viagens foram-se sucedendo a bordo do QUANZA, o ÁFRICA, o PORTUGAL, o MOUZINHO de ALBUQUERQUE, o MOSSAMEDES (que encalhou ao Largo do Cabo Frio) e também o LUSITÂNIA, que naufragou devido ao forte nevoeiro que pairava sobre o Cabo da Boa Esperança, e após colisão com os rochedos. Nestes desastres da histórica trágico-marítima, registou-se infelizmente a perda de algumas vidas, incluindo-se neste número o Comandante do paquete MOSSAMEDES.
As viagens naquela época eram uma autêntica maratona e demoravam por vezes mais de um mês até se avistar Lourenço Marques. Com regularidade chegavam também à capital moçambicana, passageiros britânicos que embarcavam posteriormente nas modernas carruagens do expresso da South African Rall Ways, com partida do cais até paragens sul-africanas.
A verdade é que perdida a joia da coroa em terras de Vera Cruz, o século transato ficou marcado por sucessivas vagas de emigrantes que partiam da Metrópole, movidos pela esperança de acharem uma oportunidade de trabalho quer no Brasil ou em Angola e Moçambique (vistos como os novos Brasis). Esse fluxo esbatia na pouca oferta e logo muito longe da procura incessante das passagens para terras africanas, uma vez que a partir de 1871, a designada Empresa Luzitana, nome usado pela empresa inglesa Baylei&Leethana, subsidiada pelo Estado Português, estava muito longe de satisfazer as necessidades prementes, e daí em 1873, ter expirado o prazo da concessão de serviços. Por decreto do Rei D. Luís, viria a ser criada a Empresa Nacional de Navegação a vapor, operando com dois navios gémeos, o PORTUGAL e o ANGOLA (primeira versão) concessionários da chamada Rota Ocidental.
A par, surgiu como empresa concorrente a Mala Real Portuguesa, que muito cedo conheceu o estado de falência. Ainda na vigência do regime monárquico, o Príncipe D.Luís, viajou a bordo do paquete ÁFRICA, visitando de Julho a Setembro de 1907, S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e África do Sul, acontecimento de grande valor histórico.
Nesse mesmo ano o Rei D.Carlos, aboliu o uso de passaporte para territórios ultramarinos, procedimento apenas exigível para que rumasse ao Brasil. Com a proclamação da República, a Empresa Nacional de Navegação (ENN) deu lugar à Companhia Nacional de Navegação (CNN), que terá adquirido os navios da frota da (ENN) e adquirindo o PEDRO GOMES. Em 1922, desponta a Companhia Colonial de Navegação (CCN), fundada na cidade do Lobito, em Angola que entra no circuito de transportes para as colónias, fazendo-se ao mar com os navios JOÃO BELO, o MOUZINHO DE ALBUQUERQUE e o COLONIAL.
Começava então a grande epopeia marítima que levava centenas de portugueses para Angola e Moçambique, e a cidade de Lourenço Marques, sabia receber como ninguém os recém- chegados depois de uma viagem de muitos dias de mar. O ponto de viragem para as carreiras regulares para o Império Ultramarino, ganhou uma nova dimensão à entrada da década 40 do século passado, e com o fim da Segunda Guerra Mundial. O então ministro da Marinha, Almirante Américo de Thomaz, manda publicar em 1945 o célebre “Despacho 100” o documento que “reboca” a Marinha Mercante para o alargamento e modernização da frota da Companhia Nacional de Navegação e da Companhia Colonial de Navegação, com navios dignos a honrarem glóriamente a secular tradição marítima de que os portugueses se orgulhavam. Os paquetes lusitanos cruzavam o mundo com roteiros até à Índia, Macau, Timor, Estados Unidos da América, Argentina e o Golfo México.
A frota mostrava-se avançada para a época, e a CNN apostou na cor azulada sublinhada por uma faixa preta para os cascos dos navios e chaminé preta, enquanto a CCN mandava pintar os mesmos de cinzento esverdeado e chaminé amarela com uma faixa horizontal branca rematada por faixas verdes.Até cerca de 1960, a CCN mantinha rotas contínuas até ao Brasil, utilizando os modernos paquetes VERA CRUZ e a SANTA MARIA, duas unidades de conceção moderna e acima de tudo confortáveis. A sã concorrência entre as duas companhias marítimas e a exploração das rotas, foi decisiva para incrementar a partida de milhares de portugueses, e segundo estatísticas cerca 5% da população portuguesa entre 1940 e 1970, fixou residência em Angola e Moçambique. Recordo-me que nesse tempo só podiam viajar para esses destinos, quem tivesse em seu poder a carta de chamada, documento emitido por indivíduos residentes em Portugal ou em outros pontos das províncias ultramarinas que tomassem a responsabilidade de convidar a emigrar, familiares, amigos ou conhecidos para lá se fixarem. Desta forma as cartas de chamadas eram digamos um meio formal do controle migratório, e uma garantia de apoio de que não se tornariam um encargo para as autoridades locais.
É nessa circunstância que o meu saudoso pai, parte sozinho em 1956, a bordo do PÁTRIA da CCN,
a caminho de Moçambique, situação muito especifica atendendo ao conteúdo da carta de chamada, mas que depois de um estudo após a chegada se transformava a exemplo de inúmeros casos num projeto de fixação familiar. Assim em 1958, seguiu a restante família e lembro-me de viajarmos no ANGOLA, e desembarcarmos vinte e dois dias depois na terra prometida.
O aumento do tráfego marítimo, levou a CCN, a adquirir o IMPÉRIO, e o UÌGE; a CNN acabava de receber o navio MOÇAMBIQUE, apreendido aos alemães durante a Iª Guerra Mundial. A década de 50, foi um período de grandes apostas levando a que as duas companhias marítimas levassem a cabo viagens mensais, onde os seus paquetes zarpavam de Lisboa, navegando a todo vapor e com as lotações praticamente esgotadas só começavam a aliviar depois de chegar a Angola, onde desembarcavam passageiros nos portos de Luanda, Lobito e Moçâmedes. As viagens prosseguiam com escala na Cidade do Cabo, e só terminavam nos Portos de Lourenço Marques e da Beira. No render da década 50, tanto a CNN como a CCN, impulsionadas por saudável rivalidade e com bons resultados financeiros chegam ao apogeu, e com ideias visionárias encomendaram paquetes de luxo, concebidos para a linha de África.
Para o efeito, a CNN encomendou o paquete PRÍNCIPE PERFEITO, (referência a D.João II) um dos maiores e mais luxuosos navios de passageiros, à Construtora Neptune em Newcastle, sendo lançado ao mar a 22 de Setembro de 1960.
Em tempo idêntico a CCN, mandou construir nos estaleiros de Heboken na Bélgica, o INFANTE DOM HENRIQUE (a realçar as comemorações Henriquinas) um autêntico hotel flutuante colocado a navegar a 29 de Abril de 1960.
Duas embarcações icónicas que prestigiaram a marinham mercante portuguesa, e que durante 14 anos efetuaram carreiras regulares paras as colónias. Mas precisamente no auge da nossa marinha mercante, quiçá a melhor frota europeia, surgiu o primeiro ato de pirataria da era moderna a envolver um meio de transporte, quando a 22 de Janeiro de 1961, foi tomado de assalto o paquete SANTA MARIA, por parte de um comando misto envolvendo portugueses e espanhóis, em pleno Mar das Antilhas, comandado pelo ex-capitão Henrique Galvão, opositor ao regime salazarista. Depois de vários dias de negociações, o paquete seguiu para o Recife, onde Henrique Galvão pediu asilo político.
O descontentamento ia-se generalizando na opinião pública e com o eclodir das hostilidades em Angola, surge o movimento estudantil de Coimbra a contestar a guerra colonial e que coagia as perspetivas de vida da generalidade dos jovens. Sem meios logísticos ao seu alcance, o Ministério do Exército opta pela requisição dos navios com maior capacidade, e requer os serviços do NIASSA, do UÍGE e do VERA CRUZ, para o transporte de companhias militares para os palcos de guerra. A 21 de Abril de 1961, o NIASSA a registar o dobro da sua lotação (1OOO passageiros) partia da Gare Marítima de Alcântara, transportando o primeiro contingente militar para Angola. No cais, os familiares com os rostos lavados em lágrimas sentiam a agonia de verem partir os seus entes queridos, para as matas africanas. Soltadas as amarras, sentia-se o retumbar agudo vindas das entranhas do navio a assinalar a hora do adeus, perante as incertezas dos que partiam.
É por esta ocasião que Salazar, coloca um ponto final nas cartas de chamada e decreta a livre circulação para o império ultramarino.
A Angola e Moçambique, chegam em número significativo milhares de portugueses, atraídos pelo que ouviam contar daquelas longínquas paragens, e deixando a Metrópole mais isolada. Em 1962, tive a oportunidade de ver ao cair da tarde atracar ao Cais Gorjão, o imponente e luxuoso PRÍNCIPE PERFEITO, onde viajaram familiares meus. Muitos populares ali estiveram presentes para observarem o paquete, com os seus quase 200 metros de comprimento. Este gigante dos mares em 1964 transportou até Moçambique, o Almirante Américo Thomaz já como Presidente da República,
cuja missão era de inaugurar no território várias instituições públicas, e muitos ainda se devem lembrar que o desembarque foi feito através de um cais flutuante construído para esse efeito, nas proximidades do antigo Parque da FACIM. No estuário da Baía, foi construído um pilar cilíndrico em betão onde assentava a estrutura metálica que terminava no passeio da marginal. Milhares de laurentinos em clima de festa, dirigiram-se para a marginal e a centenas de metros o PRÍNCIPE PERFEITO fundeava, podendo observar-se de tão perto um dos mais belos e modernos paquetes, dotado de todos os confortos.
Não raras vezes, o PRÍNCIPE PERFEITO e o INFANTE DOM HENRIQUE, eram alugados a armadores turísticos, para efetuarem cruzeiros que incluíram quase uma volta ao mundo, navegando com toda a sua notória altivez. No avanço para a década 70, as companhias marítimas sofreram um duro golpe, quando a TAP já na era do jato, praticando tarifas acessíveis e com aeronaves de ponta reduziam para 12 horas, a ligação entre Lisboa a Lourenço Marques. A crise mais se agravou com os choques de alta do petróleo decretado pela OPEP em 1973, pelo apoio prestado pelos Estados Unidos a Israel, no decorrer do conflito do Yom Kippur, aumentando o preço do combustível em 400%.
Com o estalar da Revolução de 25 de Abril, ficou sentenciada a rota marítima para os territórios ultramarinos. Somente, o PRÍNCIPE PERFEITO,
o INFANTE DOM HENRIQUE
e o FUNCHAL,
de linhas fluidas e muito modernas, foram adquiridos por vários operadores turísticos, e com nova nomenclatura cruzaram os mares por algum tempo até ao triste fim do desmantelamento, destino sepulcro de toda a frota que serviu a marinha mercante lusitana. Portugal, fundador do primeiro império oceânico da História Marítima, com um lastro de aventuras que perduraram ao longo de séculos, acabaria por se tornar no último símbolo do império europeu no continente africano. Para trás ficaram muitas histórias da grande epopeia de viagens da demanda de ida e volta, rumando contra ventos e marés numa relação imemorial com o mar, que marcaram o destino de muitos portugueses. E porque temos memória, esses paquetes símbolos de tempos passados, que num adeus silencioso foram transformados em resquícios de ferro velho,
serão recordados com muita nostalgia pela sua extrema importância como meio de transporte, e pelo papel que desempenharam durante um período significativo da história portuguesa e das suas colónias.
Fotos retiradas com a devida vénia dos Blogs: The Deagoa Bay; House of Maputo e Restos de Coleção de José Leite.
Manuel Terra – Setembro de 2024
9 Comentários
ORLANDO VALENTE
Manuel Terra
Pela sua maravilhosa reportagem, pelo seu tao elevado talento e um profissionslismo inigualavel, nao tenho palavras que possam expressar e louvar tao brilhante trabalho. Um abraco e muito obrigado,
Orlando Valente
Nino ughetto
Muito interessante este artigo,Formidavel…E eu também viagei enviado para o Norte “Nampula,creio no Funchal. em 1965 depois de um ano de treino em Boane e de là para Marrupa, ,Vila Cabral ,Niassa , Mueda ,Mocimbe da Praia etc etc etc e tudo isso em 2 anos (24 meses em zona de guerra e de combate) e… para qué ???
António José Correia de Almeida
Eu cheguei a viajar no Príncipe Perfeito nas férias graciosas do meu querido pai teve da empresa se não me engano foi no ano de 1965.Foi uma viagem de ida e volta maravilhosa naquele maravilhoso navio.Que saudades,tempos que já não voltam.Obrigado Sr. Manuel Terra pelo artigo.
António Mendes
Mais um excelente artigo. Parabéns!
Júlio Bravo
Boa e precisa descrição.
Parabéns
Tive a oportunidade de viajar no Moçambique, e num desses fabulosos Boing’s 747B .
Abraço
Carlos Hidalgo
Os meus avós paternos embarcaram num navio que fazia o percurso Lisboa, de onde eram naturais, Lourenço Marques. O meu progenitor, natural também de Lisboa, acompanhou os seus pais, quando tinha 8 anos de idade. Essa então aventura maritima, demorava muito tempo,tendo sido levada a cabo nos idos de 1929.
Após a chegada ao porto de Lourenço Marques, depararam-se com uma cidade com casas, na sua grande maioria, construídas ainda com telhados de zinco.A família instalou-se na zona do Alto-Maé, tendo sido vizinhos dos avós, da mãe e das tias ( Custódia Lopes e Bertina Lopes) do meu amigo Luís Oliveira. Outros tempos, sem dúvida.
Maria Luiza Ferreira dos Santos
A Bertina Lopes foi minha Professora de Desenho na Escola Comercial
José A.Lisboa Ferraz Ribeiro
Diz bem que uma viagem era uma autêntica maratona. Foi numa dessas viagens, que após grande temporal, e mais de trinta dias, no navio Nova Lisboa, eu preguei a partida a minha mãe e nasci em mar alto, tendo desembarcado em L. M. com dez dias de idade
Situação real da vida
Um abraço para todos
Mário
Muito boa publicação e divulgação para os mais novos que não tiveram conhecimento deste saudoso tempo.