O lado obscuro da FIFA
A FIFA (Federação Internacional do Futebol Associativo), entidade que tutela o futebol mundial, tem duas faces: uma, cintilante e, outra, obscura.
Na primeira, mais do conhecimento do grande público, cintilam os campeonatos mundiais de futebol, para gáudio de todos os que gostam deste desporto, através dos quais todos se têm deliciado com boas seleções, grandes jogos e executantes de extraordinário talento. Positivamente, também realçar as ações da FIFA para a contínua melhoria da regulamentação e leis da arbitragem e do futebol, para a difusão e melhoria do futebol, as providências para a ida de treinadores para África, Ásia e Médio Oriente, visando a popularização do futebol e sua melhoria técnica, tática e organizativa, culminando com cada vez maior número de países participantes nos mundiais, tanto nas fases de qualificação como nas fases finais.
Lamentavelmente, a face negativa na qual encontramos decisões duvidosas, interesses, corrupção e corrompidos, enriquecimentos ilícitos, compra e venda de votos que influenciam as grandes decisões, nomeadamente algumas escolhas de países organizadores de mundiais. Exemplo gritante, a escolha do Qatar para país organizador do mundial 2022. Porque ilustra perfeitamente estas situações, com a vénia devida transcrevo na íntegra um artigo publicado em 18 Nov. 2022 no jornal Expresso, da autoria de Daniel Oliveira, embora eu não partilhe de alguns pontos de vista manifestados pelo autor:
“Mundial da vergonha” – Daniel Oliveira, in Expresso” em 18/11/2022
“O antigo árbitro sir Stanley Rous era um conservador e acreditava no amadorismo.
Apesar de ter transformado o campeonato de futebol num dos maiores eventos desportivos mundiais, foi derrotado por João Havelange, graças à sua oposição à suspensão da África do Sul e à qualificação direta para nações africanas.
A chegada de Havelange a presidente da FIFA, em 1974, marca uma nova era para o futebol mundial, com os primeiros patrocínios milionários.
E com uma relação íntima com a Adidas, que garantiu comissões muito interessantes ao presidente da FIFA. Se o desporto é uma simulação lúdica da vida, a derrota de Rous foi a substituição de uma aristocracia colonial racista e eurocêntrica por um capitalismo corrupto global e aberto ao terceiro mundo.
Havelange tinha um discreto e ambicioso ajudante, Sepp Blatter, que fez um percurso rastejante até ao topo, esperando pelo momento certo para matar o senhor que serviu e usando a compra de votos para vencer Lennart Johansson, em 1998.
Com Blatter, a corrupção endémica deixou de ser consequência da degeneração moral que o dinheiro sempre traz para fazer parte da identidade da FIFA.
A escolha do Catar para organizar o Mundial de 2022 é o justo retrato de uma organização que representa uma indústria onde tudo se vende e se compra, de seres humanos à verdade desportiva.
Porque havia de ser diferente na seleção do organizador do Mundial?
Três semanas antes da decisão, a Al Jazeera, estação oficial do país, assinou um contrato de €400 milhões com a FIFA. Segundo o “Sunday Times”, uma das cláusulas secretas juntava €100 milhões em caso de decisão favorável à teocracia árabe.
No mesmo período, Sarkozy recebeu o emir do Catar e, depois, teve uma conversa importante com o pupilo de Blatter que presidia a UEFA. Platini mudou de posição a favor do emirado e a família real comprou o PSG, tornando-o o clube mais rico do mundo.
As relações comerciais entre os dois países cresceram de forma significativa. Multipliquem isto por dezenas de votos mais baratos e terão o preço deste Mundial.
O Mundial do Catar representa bem a desumanização mercantil do futebol.
Como não há adeptos, a organização contratou centenas de figurantes do Bangladeche e da Índia para fazerem as vezes da claque de cada país.
Como o clima é desadequado a data teve de ser alterada, prejudicando as principais competições de clubes e conduzindo a uma época mais sobrecarregada, com mais riscos de lesões.
O Catar é uma ditadura. Mas isso não é novo. A Itália de Mussolini organizou o Mundial de 1934, Havelange estreou-se oferecendo à ditadura argentina a possibilidade de se branquear enquanto atirava opositores para o Rio de Prata, em 1978.
Assim como Hitler usou os Jogos Olímpicos de 1936 e a China os Jogos Olímpicos de Inverno deste ano.
Com o otimismo de alguns, poderia acreditar que isto seria uma oportunidade para ditaduras como a do Catar se abrirem ao mundo.
Que as interdições a gays e lésbicas seriam desafiadas. A história não nos diz isso.
Nem o presente: a FIFA proibiu que a seleção dinamarquesa exibisse mensagens em defesa dos direitos humanos.
O problema do Catar não é estar fechado ao mundo, é comprar o mundo para que ele feche os olhos.
Posso ignorar a ausência de vida num Mundial sem povo, sem tradição, sem clima, sem nada que faça sentido, porque o capitalismo tende a tornar artificial o que nasceu da espontaneidade.
Posso ignorar a corrupção, porque ela já ocupa todos os domínios do futebol e é o preço da mercantilização sem limites do desporto.
Posso ignorar a ditadura, porque o futebol não se pode confinar nas democracias. Posso até ignorar o desrespeito pela diversidade, porque o mundo também é diverso.
Mas não posso ignorar que os estádios onde os adeptos se sentam, os quartos onde os atletas dormem, os campos onde as equipas jogam estão construídos sobre 6500 cadáveres.
Que tudo foi feito à custa do sofrimento de milhares de escravos vindos do Sri Lanka, Bangladeche, Nepal, Índia e Paquistão, num país onde os migrantes são uma subespécie que representa 95% da mão de obra.
Com direito a ridículas compensações às famílias dos mortos, quando existem. Aprisionados no deserto, sem transportes, e obrigados a trabalhar debaixo de 50 graus, em condições inumanas.
Roubados nos seus salários, escravizados pela ameaça de deportação. E, no fim, despejados das suas casas, alguns com um aviso de duas horas.
Cada golo esperado neste Mundial corresponderá a 39 escravos mortos.
Não há como naturalizar este crime em nome do entretenimento.
O meu amor ao futebol é o de Sócrates, da democracia corinthiana. Não é por isto.
Por mim, seria um orgulho se a seleção que nunca me representará naquele campo de morte ali não estivesse.
Ou que ao menos fizessem o que fará a seleção holandesa: por descargo de consciência, vai encontrar-se com um grupo de trabalhadores migrantes.
Mas uma seleção não estará no Catar: a da Rússia. Foi banida em nome dos “nossos valores”. E Blatter, humanista de sempre, queria que o Irão também ficasse de fora. Por causa da violação dos direitos humanos.
Se isto não é humor negro…”
Fim de transcrição.
E no campo das decisões duvidosas e dos interesses, veja-se a seguinte situação sobre a qual passo a reflectir:
A mim, mas não só, faz-me confusão que a organização do mundial de 2030 tenha sido atribuída à Espanha, Portugal e Marrocos, e tenha os três primeiros jogos a realizar-se no Uruguai, Paraguai e Argentina, quando a norma tem sido sempre a rotatividade entre continentes e a organização a recair no país ou países do continente visado.
Estas decisões anormais suscitam-me as seguintes dúvidas que me parecem legítimas: Porquê a inclusão de dois continentes (Europa e África) na organização do mundial de 2030? Porquê a realização dos três primeiros jogos num terceiro continente (América do Sul)? Tendo sido apresentada a justificação do jogo inaugural no Uruguai, pela passagem do centenário do primeiro mundial (1930) que decorreu nesse país, e admitindo que seja aceitável tal excepção, porquê a realização também na América do Sul dos segundo e terceiro jogos?
Na sequência destas dúvidas, não será pertinente desconfiar-se que se pretende atribuir à Arábia Saudita a realização do mundial 2034, e que para tal haveria que eliminar os impedimentos? Com as decisões descritas no parágrafo anterior anula-se a pretensão dos continentes (África e América do Sul) que seguiriam na escala da rotatividade.
Recordemo-nos que a pretensão da Arábia Saudita já foi divulgada pela imprensa, e de tudo que envolveu e envolve a transferência de Cristiano Ronaldo para um clube saudita e para embaixador daquele país para o mundial 2034.
Nada estou a afirmar, o que só faria se dispusesse de informação fidedigna. Mas o exercício do direito de reflectir sobre os factos conhecidos, não me está vedado. Aguardemos, porque o que fôr, saber-se-á. Que tudo é muito esquisito, lá isso é.
Pierre Vilbró – Novembro 2023
ÚLTIMA HORA: A FIFA confirmou esta terça-feira que o Campeonato do Mundo 2034 será organizado pela Arábia Saudita, única candidatura recebida.
Giovanni Infantino presidente da FIFA já confirmou a decisão:
O maior espetáculo do mundo será acolhido pelo Canadá, México e Estados Unidos em 2026 na América do Norte. As duas próximas edições do Campeonato do Mundo terão lugar em África (Marrocos) e na Europa (Portugal e Espanha), com três jogos de celebração na América do Sul (Argentina, Paraguai e Uruguai) em 2030 e na Ásia (Arábia Saudita) em 2034. Três edições, cinco continentes e dez países envolvidos nos jogos do torneio – isto está a tornar o futebol verdadeiramente global!»
4 Comentários
Nelson Barata
Infelizmente, até ao nível dos resultados desportivos, acontecem “desconfianças certas”…
Nem todos os países têm o mesmo peso no que respeita ao futebol, que já não pode ser considerado “desporto” mas, negócio.
Agora, os países mais abastados, são beneficiados no que respeita á organização de eventos de futebol, porque cada vez mais, se privilegia o lucro e, por isso, os “padrinhos” são escolhidos com mais minúcia e pelo que valem a nível económico.
Se se joga com + de 40º, não importa. Não são os dirigentes que jogam…
Neste momento, é o petrodólar que manda, independentemente, de os escolhidos poderem ser consideradas nações autocráticas, racistas, esclavagistas etc…é o espectáculo.
A vergonha, essa, fica para quem pratica essas escolhas e o que os motiva a praticá-las.
Artigo muito interessante ao nível da análise efectuada. Parabéns ao seu autor.
Fernando Teixeira Xavier Martins
Já no tempo de Coubertin se falava de corrupção. Cem anos depois já é mais refinada e infelizmente está a passar ao lado de todos nós. Parabéns ao aniversariante.
Abreu Vicente
A liberdade de expressão não devia dar direito a prisão, mas no mundo corrupto em que vivemos tudo é possível. Que pena!!!
Um duplo parabéns ao Pierre Vilbró.
Luis Batalau
AMANTE DO DESPORTO E EPECIALMENTE DO FUTEBOL. LAMENTO A GRANDE CORRUPÇÃO QUE VEM REINANDO NOS PODERES INSTALADOS, COMO É O CASO DA FIFA. E MAIS NÃO DIGO PARA NÃO SER PRESO!