Mário Coluna – As legendas não têm ponto final
Nascido em Magude a 6 de Agosto de 1935, Mário Coluna teria feito agora 86 anos. Trata-se de uma legenda que nos deixou há 7 anos. Mas porque as legendas não levam ponto final, importa recordar momentos de uma história de vida multifacetada, que vai muito além do grande futebolista que (e)levou o país além-fronteiras.
Querido e idolatrado na Europa, Mário Coluna cruzou os céus de Portugal para Moçambique, em 1976, em sentido contrário à debandada que então acontecia. Para o Monstro Sagrado, a Independência Nacional era a realização de um sonho e, como tal, a oportunidade de servir e ajudar no crescimento do país que o viu nascer. O Monstro Sagrado, que em mais de duas décadas actuou ao mais alto nível na Europa e no Mundo, tendo o nome gravado nos anais da FIFA, deixou para trás a certeza do conforto e assinou um contrato com o Textáfrica do Chimoio, como técnico, tendo conquistando o primeiro título de campeão nacional.
A MONTANHA SAGRADA
Depois de (per)correr o planeta… a correr, registando com letras de ouro, a sua imagem de marca, na Europa e no Mundo, graças aos pés, mas sobretudo à cabeça que ditava a liderança por onde passava, finalmente, a oportunidade de regressar e servir a sua Pátria.
Numa entrevista em Portugal, o Monstro revelou uma mágoa: a de não ter podido vestir, como jogador, a camisola da Selecção de Moçambique. Mas acabou por ter o privilégio de ser internacional pela terra que o fez nascer, como seleccionador e Presidente da FMF.
UM ESTILO EM EXTIÇÃO
Da mistura do sangue beirão do senhor José Maria Coluna, com o sangue machangana da senhora Lúcia Chibure, nasceu Mário Coluna. Pontual. Irritantemente pontual. Disciplinado e disciplinador. Tudo nele era solene. O andar, o falar e até o comemorar. Ritmo morno, fala suave e lenta, mas incisiva.
No interior das quatro linhas, funcionava como um GPS, uma placa giratória por onde o jogo passava, para ser pensado quanto à alternância para os flancos e aproveitamento dos espaços vazios.
Actuando pelo Benfica ou pela Selecção de Portugal, como meio-campista, passou a fazer parte de uma galeria de estrelas muito restrita, cabendo nela apenas jogadores como Didi, Beckenbauer e Platini. Uma espécie em extinção. A sua importância para o desenvolvimento do desporto-rei, foi reconhecida pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol, um departamento da FIFA que incluiu o seu nome como um dos 100 melhores jogadores do Século!
O que é que tornou este Monstro Sagrado tão carismático? Os 126 golos em 525 jogos oficiais com a camisola do Benfica? O facto de ser o jogador com mais jogos realizados com a braçadeira de capitão, de 1963 a 1970? Nos dias que correm, a maioria das equipas queixa-se da falta de jogadores/patrões… “à Coluna”. Era um falso-lento, com uma resistência a toda à prova, que dispunha de uma apurada intuição para se movimentar junto à área adversária, juntando a isso um forte remate à meia distância.
Como capitão, era um líder protector, que não admitia que ninguém crescesse para um seu colega. Nessas alturas, usava uma frase que intimidava os adversários: “Se tocas mais no miúdo, sais daqui com uma perna a lamber a outra”.
Um episódio inédito. Coluna reconhece que perdeu a cabeça e optou pela agressão, mesmo assim não sendo expulso. Mais uma vez, ao papel de grande capitão juntou o de justiceiro.
O seu depoimento:
– Tudo aconteceu na Roménia, num jogo difícil, em que Eusébio estava a “partir a loiça” sendo alvo de uma marcação dura por parte de um latagão que não lhe dava tréguas, batendo forte e feio. A certa altura, o romeno pisou a Pantera Negra, que caiu e uma bota saiu-lhe do pé. O romeno pegou na bota para atirá-la para lá da vedação. Eu estava perto e segurei-a. Travámos uma pequena luta pela posse da bota e eu consegui arrancá-la. Ele preparou um escarro e cuspiu-me no rosto. Confesso que foi uma das poucas vezes em que perdi completamente a cabeça. Bati-lhe repetidas vezes na testa, com a bota que tinha na mão. O árbitro, um inglês, correu para o local, já preparado para me expulsar. Mostrei-lhe o meu rosto cheio de ranho, misturado com saliva. O juiz raciocinou rapidamente, viu que a justiça estava feita, pois ninguém com uma bota na mão resistiria à tentação de tirar desforço após uma baixeza daquelas. Retirou do bolso de trás um lenço, limpou-me a cara, e… mandou prosseguir o jogo sem me expulsar.
ESCAPOU À PIDE
Praga, 1966. Eliminatórias da selecção portuguesa, para aquilo que viria a ser uma grande epopeia lusa, com a conquista do terceiro posto no “Mundial”. Comunismo lá. Fascismo em Portugal. A desconfiança entre tudo e todos era total. “Por isso é que Salazar governou até á morte”. O Monstro esteve a milímetros de sentir na pele aquilo que já havia acontecido ao seu colega Santana e a Daniel Chipenda: a estada nas masmorras da PIDE. Uma circunstância feliz salvou-o:
Essa história da PIDE tem a ver com uma viagem à Checoslováquia. Jogo difícil, em que alinhámos muito tempo com menos um jogador e rendemos até aos limites. Mas antes, apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram convites, pois a ideia era apoiarem-nos.
Coluna, como capitão, reuniu os ingressos que os colegas não precisavam e ofereceu-lhes. Nada mais do que isso. A vitória por 1-0, com golo de Eusébio foi memorável. E deu direito a festa, em pleno cenário comunista numa casa alheia, episódio inofensivo e fugaz, rapidamente esquecido. Só a PIDE não estava de acordo e viu nisso um pactuar com os terroristas.
Chegados à Lisboa, dias depois, o Monstro recebia uma convocatória para ir à PIDE. Algum engano? Não fazia a mínima ideia do que se tratava, mas a verdade é que os seus pés já não se deslocavam com a segurança com que o faziam na relva.
Num “terreno” desconhecido e hostil, de pergunta em pergunta, lá chegou a um gabinete guardado à porta por dois “caras-de-pau”, dirigindo um ar de poucos amigos ao recém-chegado.
Mandaram o Monstro entrar para as formalidades que o conduziriam à cela PIDESCA. O inspector que o atendeu era benfiquista e seu admirador. “Olha o Mário, meu grande capitão. O que o traz por cá?” Com a habitual calma, mas com o coração aos pulos mostrou o impresso que o convocava. Finalmente, fez-se luz e safou-se, pelo facto de o comandante Pidesco ser seu admirador…
CHORO NA FESTA DOS 70 ANOS
Fazia 70 anos e um grupo de bons amigos, decidiu juntar forças e homenageá-lo. A noite do dia 7 de Agosto de 2005, foi “dura” para Coluna. Os pés firmes, a voz grossa de comando, já não eram os mesmos de outrora. Uma homenagem, lindíssima, fez-lhe chegar as lágrimas aos olhos. A emoção foi grande, de tal forma que houve quem receasse pelo coração do Monstro, perante tantas surpresas.
No final da noite, foram poucas mas elucidativas as suas palavras:
– Estou limpo. Vocês sabem que sempre fui um patriota, sempre pensei em viver no meu país e algumas coisas não iam correndo bem. Agora, esta homenagem superou todas as expectativas. Não tenho palavras para descrever a minha gratidão. Só posso dizer que, em relação às mágoas que vinha referindo, estou limpo. Esta festa de reconhecimento limpou tudo. Estou feliz por ver toda esta nova família, unida à minha família mais chegada!
No seu discurso, o seu forte Khanimambo provocou aplausos.
Óscar Monteiro, Presidente da Comissão Coluna 70, sintetizou desta forma, a razão da homenagem: “Os grandes homens devem ser reconhecidos em vida, devem sentir o reconhecimento pelo que fizeram por todos nós”.
A 25 de Fevereiro de 2014, com 78 anos, o Monstro Sagrado perdeu a vida, em consequência de complicações decorrentes de uma infecção pulmonar.
Renato Caldeira – Outubro de 2021
9 Comentários
Manuel Martins Terra
Na foto de jogadores ultramarinos, para além de se observarem angolanos e cabo-verdianos, consigo ver os moçambicanos, Vicente, José Pérides, Juca e Wilson. (Fila de pé). De joelhos: Costa Pereira, Matateu, Coluna e Perdigão. Não tenho a certeza, se algum dos restantes não se trata do Nicolau. Ao lado esquerdo do José Pérides, parece-me o David Julyes, um futebolista sul africano que ainda jogou no Sporting Clube de Lourenço Marques, e que veio para Portugal, naturalizando-se português, onde brilhou no Sporting Clube de Portugal, chegando inclusive a exemplo do brasileiro Lúcio, a integrar a seleção nacional lusa na década 60. Que grandes jogadores, chegavam à Metrópole.
BigSlam
Caro Manuel Terra, continuas com uma memória de elefante!!! Parabéns!
António Soeiro
Mário Coluna foi uma lenda no futebol português.
Um grande capitão que conduziu o seu clube de sempre Benfica a grandes conquistas europeias.
Também a seleção de Portugal teve a sorte de o ter durante alguns anos liderando os seus companheiros a grandes triunfos para Portugal.
Merece todos os elogios que lhe forem feitos.
José Miguel Rodrigues
Grande monstro sagrado, tive pena de não o ver jogar ao vivo.
Hoje estaria num dos maiores clubes da Europa.
Merecia ter erguido o troféu Jules Rimet que seria entregue pela Rinha de Inglaterra no Mundial de 66 e seria o pontoalto da sua brilhante carreira.
Mas os senhores da Federação na altura preferiram venderem se aos ingleses, revelando também pouca ambição e pequenez de pensamento.
José Miguel Rodrigues
Manuel Martins Terra
O Mário Coluna, foi um futebolista a que poucos adjetivos restam para o poder definir. Era efetivamente o motor que fez pôr em marcha o Benfica europeu e que capitaneou com mestria a famosa seleção dos “Magriços”, que em 1966 em Londres, espantou o mundo do futebol, tendo o saudoso Eusébio, como cabeça de cartaz. Atrevia-me até a dizer que não fora a lesão de Vicente, que o impediu de jogar com a Inglaterra e o misterioso desvio da seleção das quinas de Liverpool para Londres, praticamente em cima da partida frente aos anfitriões, Mário Coluna exibiria a Taça Jules Rimet, no relvado de Wembley. O Mário Coluna, era também um atleta eclético, que com a camisola do GDLM, bateu o record provincial do salto em altura, com a marca de 1,825 metros. Foi também um praticante de boxe, que certamente lhe conferiu a forma de ser ágil e duro, quando necessário. Depois, Mário Coluna que também acrescentou ao seu currículo uma passagem na década 70, ao serviço do Lyon, treinado depois o Estrela de Portalegre. Teve ainda uma passagem por Angola, orientando o Benfica de Huambo. Após o 25 de Abril,regressou a Moçambique, país que o viu nascer, e pese todo o reconhecimento que o governo moçambicano lhe rendeu atribuindo-lhe cargos políticos e desportivos , Mário Coluna, nunca escondeu a mágoa de lhe terem nacionalizado o prédio que comprou com o dinheiro que ganhou no futebol.Teve a honra de ter estado em cinco finais europeias, das quais venceu duas. Mário Coluna, morreu com Moçambique atravessado no coração, e com o Benfica, no pensamento. Uma “águia” gloriosa, que os benfiquistas e o futebol português jamais poderão esquecer. Da minha parte, obrigado Sr. Coluna.
BigSlam
Caro Manuel Terra, grato por enriqueceres este artigo com o teu excelente comentário. De facto Mário Coluna foi um excelente atleta eclético que deixou a sua marca de classe por onde passou.
Bem haja!
Jose Cortez Cortez
José Nóvoa Cortez: Devo clarificar que em português não se diz “legenda” mas sim Lenda. A “legenda” é apenas uma corruptela da palavra “legend” em inglês. Os povos de língua inglesa dizem legend para designar uma lenda. E nós vamos atrás e toca de fazer a tradução à letra para “legenda” . Nós temos na nossa língua a palavra lenda que é a aplicada ao caso. Portanto: O Mário Coluna era uma lenda e não uma legenda
e.meixieira@gmail.com
Nunca é demais agradecer ao BigSlam, este belo trabalho de recordar factos da nossa história do passado recente, que fizeram e sempre farão parte da nossa própria história de vida da nossa meninice, juventude e de adultos. Aqu8ilo que nos marcou de muitas maneiras, como amigos, personalidades importantes, locais onde vivemos e nos deixaram recordações que levaremos conosco para a eternidade. MUITO OBRIGADO, BIGSLAM! O VOSSO ESFORÇO E TRABALHO NÃO SÃO EM VÃO! KANIMAMBO!!!!
BigSlam
Alguns episódios inéditos na vida do “Monstro Sagrado”, contados pelo jornalista moçambicano Renato Caldeira.