In memoriam do TITIO TURUTÃO !
Ernesto Edgar de Santana Afonso – Né Afonso nasceu em Quelimane no dia 23 de Fevereiro de 1950. Tinha apenas 5 anos quando começou a tocar piano, por influência dum afinador de pianos, um goês de seu nome Filipe dos Mártires. As irmãs mais velhas do Né Afonso já tocavam. O gosto pela música levou a que o seu pai o inscrevesse numa Escola de Música dum Instituto de Freiras em Quelimane. O ambiente era “chato”, e por isso mesmo Né Afonso deixou o Instituto, porque não estava para aturar aquela coisa de estar ali das 3 às 5 da tarde a ouvir falar das colcheias e semi-colcheias, da clave de sol, ou da pauta, até porque a essa hora ele gostava de estar a jogar futebol com os amigos.
Felizmente a “fuga” do Colégio não retirou o seu interesse pela música.
Os anos passam e Né Afonso começa a pensar em ingressar num conjunto musical. Tinha 12 anos. O primeiro grupo tinha um nome que estava ligado às brincadeiras de miúdo, aquelas brincadeiras de “cowboys”. O nome do conjunto era “OS JOVENS APACHES”. Foi sol de pouca dura. O grupo desfez-se. No seu horizonte surge outra oportunidade. Ingressa nos “LORDES”, onde tocava o Arnaldo Miranda, um músico quelimanense de grande valor. A determinada altura há um “golpe de estado” nos “Lordes” e Né Afonso é retirado do grupo por um senhor chamado Fernando Adão (chegou a ser o responsável administrativo do Emissor Regional da Zambézia, ao tempo em que o Delegado do Rádio Clube de Moçambique era Ângelo Viegas) e que o coloca nos “BLUE TWISTERS”. Esse foi um dos momentos importantes da sua vida artística. Conheceu cançonetistas de renome de Lourenço Marques, muitos dos quais actuavam regularmente no “Programa de Variedades” do Rádio Clube de Moçambique, que vinham cantar no Restaurante da FAE (Feira das Actividades Económicas da Zambézia), como foram os casos de Natércia Barreto, Zito Pereira, Berta Laurentino, Liliana Matos e tantos outros. Convém aqui sublinhar que a Natércia Barreto, popularmente conhecida por Techa, gravou uma canção de autoria de Né Afonso, intitulada “Chitato”.
Para Né Afonso o carnaval sempre foi um momento importante da vida da sua Zambézia. Ele dizia que Quelimane era algo parecido com Salvador da Bahia, no Brasil. Era no carnaval de Quelimane, que as pessoas tinham liberdade absoluta. Iam para a rua, participavam no corso, entravam nos clubes onde normalmente, por causa da segregação racial, não podiam habitualmente entrar, andavam mascaradas, podiam ouvir desde o samba à marrabenta.
A culinária da sua Zambézia era diferente de todo o País. Ainda hoje é difícil dizer quantos pratos típicos existem. A história da culinária zambeziana leva-nos inevitavelmente à “menina Páscoa”, (chamavam-lhe menina porque não se casou) uma cozinheira de mão cheia. Uma senhora de 70 anos de idade que adorava rodear-se, no frondoso quintal da sua casa, das pessoas amigas, com quem gostava de conviver. Nessa roda de amigos contavam-se histórias e ouviam-se canções, algumas delas dedilhadas pelo Né Afonso. Numa altura em que fui a Quelimane para realizar o programa “Bondiazinho” eu e o Né vivemos essa odisseia dos longos almoços à zambeziana, que começavam bem cedo com o matabicho e entravam pela noite dentro.
João de Sousa com Né Afonso na DW
A sua vinda para Lourenço Marques foi um choque. Era outra coisa. Confronta-se com um outro mundo. Para trás ficou a pacatez de Quelimane. Na capital da então província ultramarina toca na Rua Araújo, nos tempos de cabarets como o “Topázio”, a “Cave” ou o “Pinguim”. Ao mesmo tempo estava a fazer o curso de educação física. Né Afonso acabava de actuar às 3 da manhã, dormia até as 7 e depois ia para as aulas. E foi sempre assim até acabar a sua formação.
Rua Araújo com os cabarets como o “Topázio”, a “Cave” ou o “Pinguim”.
Na Rádio, em Quelimane, com apenas 16 anos de idade, faz programas da criança, uma actividade a que dá continuidade quando ingressa na Rádio Moçambique. E é aqui na capital moçambicana que nasce o “Titio Turutão”, o homem “que sabe tudo” e que cantou, entre outras coisas, a “marrabentinha da criançada”.
A experiência que tinha recolhido na Zambézia constitui a base para a gravação do LP denominado “Bons Sonhos” ao qual se segue um segundo disco intitulado “Dez Anos”, gravado em 1985 e que serve para assinalar os 10 anos da independência de Moçambique. Nessa iniciativa foi apadrinhado pelo António Alves da Fonseca, que na altura desempenhava as funções de Director Comercial da Rádio Moçambique. Da sua obra consta ainda um “single” gravado com histórias infantis e no qual Né Afonso contracena com Álvaro Belo Marques, uma figura da comunicação social que esteve intimamente ligado aos programas culturais que se produziam na nossa Rádio Pública e também na Televisão de Moçambique.
Né tem um papel importante na realização e direcção do Sector de Teatro da RM. Escreve, adapta, traduz, interpreta e dirige actores, com uma mestria impressionante. São de sua lavra alguns poemas e contos que eram integrados no programa radiofónico do mesmo nome, idealizado pelo saudoso Leite de Vasconcelos, nos anos 80. O seriado radiofónico “UNAHITI O GUERRILHEIRO” é de sua autoria.
Não menos importantes foram as suas ideias sobre a criação duma orquestra juvenil. Era preciso encontrar um mecanismo que permitisse manter ocupadas as crianças que acorriam à Rádio. Os instrumentos (alguns) existiam. E tanto quanto o tempo permite recordar, pessoas houve que (para além do Né Afonso) se dedicaram a ensinar as crianças a tocar e cantar. São exemplos dessa dedicação à causa da formação de jovens, o casal Awendila, (Aweni e Teresa) a Vera Belo Marques e a Luísa Monteiro. Neste projecto, Né Afonso encontra depois em Yana (Samuel Munguambe Júnior) o parceiro que dá continuidade à sua ideia de formação duma Orquestra Infantil. Na altura Yana surge como colaborador, já que ainda se encontrava vinculado ao Ministério da Cultura. A orquestra foi o embrião para a formação duma Escola de Música, inicialmente tutelada pela Rádio Moçambique e actualmente de natureza privada, que, segundo Yana, pode vir a ostentar brevemente o nome de Né Afonso.
Ano de 1990 – Emílio Manhique, João de Sousa, António Rocha e Né Afonso – DW
Ao lembrar, desta forma bastante resumida, alguns aspectos da vida e obra de Né Afonso, deixo-vos com uma frase que ele me disse, numa entrevista que me concedeu: “não pensem que eu sou um fenómeno. Se aqui na Rádio não tivesse havido muita camaradagem, eu não teria feito o que fiz”.
Calou-se a voz daquele que conquistou o coração da criançada. A pequenada de ontem … os adultos de hoje. Né Afonso deixou-nos no dia da Nossa Senhora de Fátima – 13 de Maio.
Que descanse em Paz.
O sol já se foi deitar
tão fatigado que está
chegou a hora, de fazer oó
sonhar, até amanhã…
tatá, papá
tatá, mamã
estou quase a adormecer”.
João de Sousa – 17.05.2016
Um Comentário
Nuno Remane
Coisas que iluminam a alma, nos caminhos do tempo ! Com estas músicas fomos acariciados pelos nos pais…. dormimos e sonhamos um mundo melhor …. que Deus o tenha… quem tem um dom, como o Titio Turutão, tem o poder de transformar pessoas ! E não nascem todos os dias …. homens como ele… foi uma dádiva abençoará na vida e na história de muitas crianças …