Recordando a Farinha Babita 50 anos depois
Por Rui Martins
Em 1969, chefiava o meu Pai, António José de Almeida Martins, há muitos anos, a maior fábrica de moagem Portuguesa, pertencente à Companhia Industrial de Portugal e Colónias (CIPC), no Beato, em Lisboa, cujo produto principal era a farinha Nacional. Tinha-se especializado na Suíça (na empresa Buhler, em Uzwil) e na Alemanha (na empresa Miag, em Braunschweig) em equipamento de moagem de trigo e, apesar do elevado grau de especialização adquirido, dizia sempre à família e aos amigos que era um “Moleiro” dos tempos modernos! Mas, nesse ano tudo iria mudar na sua vida…
Apesar de chefiar a maior fábrica do país, como a família era relativamente grande (3 filhos), ainda trabalhava, em tempo parcial, à noite, em desenho de arquitectura, em vários ateliers de Lisboa. Neste sentido, como morávamos nos arredores, em Paço de Arcos, raramente o víamos, a não ser de vez em quando, ao fim de semana, e isto quando não havia problemas (que eram frequentes) na fábrica que trabalhava 24 horas, com 3 turnos de 8h. Mantinha ele esta vida atarefada quando um dia, nos princípios de 1969, a fábrica é visitada por uma delegação de empresários Moçambicanos. E, depois disso, a história que o meu Pai contava era de que empresários, incluindo o Benjamim Cacho, que chefiava a delegação, estavam a acabar de montar uma fábrica de moagem na Machava, a 30km da antiga Lourenço Marques (LM, actual Maputo), equipada com as máquinas mais evoluídas em termos mundiais da Buhler (Suíça) e da Miag (Alemã) e contactaram a administração da CIPC pois estavam interessados em contractar o maior especialista Português nesse tipo de equipamento. Em termos actuais e futebolísticos, uma espécie do “Mourinho da Farinha”! O meu Pai, que depois dos vários anos de especialização e trabalho na CIPC, sempre pensou que seria indispensável à empresa, ficou muito surpreendido quando lhe foi apresentada essa proposta e, com a conivência da administração da empresa onde trabalhava, pensou rejeitar, imediatamente, a oferta. Impôs uma série de condições quase impossíveis, mas o Benjamim Cacho (um Moçambicano de alma e coração), qual “Alex Ferguson…”, foi bastante dissuasor, disse-lhe que África era uma maravilha e Lourenço Marques, em Moçambique, era a cidade mais bonita do mundo (tinha razão…)! Resultou, em meados de 1969, pouco depois do “Homem ter pisado a Lua” (terá mesmo?…:-), pisávamos nós solo Moçambicano!
Já em LM, a fábrica era na Machava (anteriormente só existia a moagem da Matola) e da Socimol, uma sociedade anónima, de quatro sócios, Benjamim Cacho, Inácio de Sousa, António Ferreira e Cabrita Calafate, no meio do mato, nem estrada alcatroada existia, apenas uma picada e uma linha de caminho-de-ferro para transportar o trigo em vagões e, posteriormente, escoar a farinha. Pode dizer-se que a Socimol era uma pérola no meio do mato, ou uma verdadeira “lança em África”, com tecnologia do mais avançado que havia na altura. Havia o betão, a maquinaria nova, ou seja, o “hardware”, mas faltava o principal, o “software”, isto é o “know-how”, o pessoal qualificado para operar a fábrica. Já prevendo isso, uma das exigências do meu Pai, ainda em Lisboa, logo satisfeita pelo Benjamin Cacho, foi a necessidade de levar consigo uma pequena equipa, com um operário especializado na operação da fábrica, e um químico “padeiro” especialista na produção de farinha de qualidade. E, assim começou uma aventura Africana, com muito trabalho e dedicação que ocupava o meu Pai, de novo, 24h por dia, e, todos os dias da semana, até aos fins-de-semana, os 3 filhos iam com ele, e aí passavam bastante tempo quer na fábrica, quer nas palhotas na zona circundante, a brincar ou a jogar à bola com os mocinhos que aí viviam e para quem a passagem do nosso Peugeot 404 na picada de terra, era sempre um acontecimento diário!
Nos primeiros meses as máquinas foram afinadas, uma equipa de operários locais foi formada e tudo ficou pronto para a fábrica entrar em produção como um relógio. Uma das questões que surgiu foi a necessidade de dar um nome à farinha de alta-qualidade que começou a ser produzida, única em Moçambique, e, como se vangloriava o meu Pai, cheio de orgulho, até única no mundo!
Após a nossa chegada a LM, fizemos amizade com a família Cacho, nomeadamente, nós, miúdos, com a sua jovem neta, Bárbara Cacho Tavares, que era conhecida pelo nome de Bábita. Ora aí estava um belo nome para a farinha, pelo que em homenagem ao grande empenho do sócio Benjamin Cacho no projecto, e com o grande apoio do meu Pai (e de toda a família), os restantes acionistas concordaram em dar o nome, pelo qual a sua neta era conhecida, à nova farinha. E, assim surgiu a farinha “Babita”, há 50 anos atrás, precisamente em 1970! E, continua a ser uma grande honra para a família Cacho Tavares e para a nossa família que o nome se mantenha até hoje.
Já desapareceram, o Benjamim Cacho (há muito tempo) e o António José Martins (muito recentemente), mas os seus esforços e as suas memórias perduram no nome da farinha “Babita”. Concluo, com a foto no topo do artigo, que inclui um saco original da farinha, a verdadeira Bábita (em carne-e-osso) junto com o seu Avô Benjamim – Empreendedor Moçambicano (ao lado em cima), e o António Zé – Moleiro Português (ao lado em baixo)!
Como dizem em Moçambique, é realmente uma história “Maningue Nice”!…; 🙂
P.S. – Quando a fábrica entrou em produção, ao fim de algum tempo, verificou-se que, inexplicavelmente, desaparecia alguma farinha. O meu Pai descobriu, então, que eram alguns operários mais carenciados para ajudar as suas famílias, pelo que, a partir desse momento, foi organizado um plano para se disponibilizar farinha gratuitamente a todos os operários. Desde então, nunca mais desapareceu farinha!
Rui Martins – Macau, Setembro de 2020
Fonte: Jornal O País
- A ideia deste artigo surgiu após ter recebido este vídeo do Chefe Rogério falando de um Bolo de Cenoura com a Farinha Babita:
9 Comentários
Elizabete Correia
Gostei imenso de ler este ARTIGO como a farinha Babita aconteceu. Obrigada.
Jorge Esteves
A história é linda e como tal toca-nos muito.
Julgo não estar em erro sobre este empreendedor Benjamim Cacho, provavelmente da Manhiça? E se assim for, a Bárbara será neta do Zé Tavares. Se estiver correto gostaria de ter o contacto da Bárbara ou do Pai por termos algo em comum.
O mundo é feito destas pequenas histórias, obrigado.
Jorge Esteves
Rui Martins
Caro José Esteves,
Está correcto o email do Zeca Tavares é este:
jsmbtavares@gmail.com
Abraço,
Rui Martins.
Rui Martins
As minhas desculpas:
Caro Jorge Esteves
Pierre Vilbró
Pena não se ter querido distinguir os colonialistas, exploradores e racistas, dos que nada mais faziam do que trabalhar, garantindo o sustento dos seus, empregos, riqueza e desenvolvimento, e já integrados na vida, cultura e costumes de Moçambique.
Todos ficaram a perder. Mais uns, do que outros.
Mas Moçambique para todos, talvez fosse e seja utopia. Afinal, Moçambique está em África.
Madalena
Que maravilha!! Histórias que dariam enredos tão bons para documentários, séries que glorificariam o nosso país e a sua história…
Manuel da Silva
O Dr. Rui Martins – Vice-reitor da Universidade de Macau, é meu amigo de longa data, acho até que chegámos no mesmo ano a Macau e vi-o pela primeira vez durante a missa de domingo no Colégio D. Bosco, onde estudavam os nossos filhos .
Dou-lhe os meus parabéns pela narrativa. Eu também estive em Moçambique, é realmente uma história “Maningue Nice”!…; 🙂
Abraços
milu gouveia
Historia muito linda.
Manuel da Silva
Olá Milú,
Estou convencido que muitos de nós tem histórias que de uma ou de outra maneira ajudaram, com a sua imaginação e trabalho, a dar forma ao país que tantas memórias e saudades nos deixou …