E isso vai acontecer!
Quando somos crianças, vivemos tão fascinadas com a nossa inocência, que nos tornamos frágeis, simples, transparentes. Temos sempre as mãos ocupadas com algo que nos faz felizes. Um gelado, as mãos dos nossos pais, a plasticina da escola, o brinquedo que a avó nos deu, a água, o algodão doce, a terra, os lápis de cera…
Acordamos com vontade de acordar!
Respiramos com vontade de respirar!
Corremos com vontade de correr!
Abraçamos com vontade de abraçar!
Rimos com vontade de rir!
Não temos expectativas sobre rigorosamente nada e estamos sempre expectantes em relação àquilo que vai acontecer a cada dia.
Nenhum de nós, aqui presente, se lembra de explicar a uma criança que o mundo está a transbordar de fome, de guerra, de doença, de intriga, de desassossego, de tristeza, de morte, de ódio, de inveja … e que um dia, lá mais para a frente, vamos inevitavelmente sentir, reagir e chocar com estas realidades.
A doença assaltou-me de forma inexplicável, cruel e silenciosa. Ponto final! Andava tão distraída com tanta coisa, que ela me apanhou na curva. Virei as costas ao mar e uma onda gigante traiu-me! Erro inadmissível, nunca se viram as costas ao mar, por mais tranquilo que ele aparente estar!
No mês de outubro, fiz a pergunta mais difícil da minha vida a um médico, e obtive a resposta mais cruel que alguma vez pensava ouvir – “Dr. a partir de hoje, sou uma doente oncológica?” E ele olhou para mim, admirado com a pergunta, e atirou com a folha do resultado do exame para cima da secretária e disse “Sim, é uma doente oncológica”. Ainda hoje sinto o vento que aquela folha fez ao cair em cima de tantas outras folhas, cheias das mesmas respostas que a minha, ou não.
Nesse dia, e no outro, e passados cinco dias e mais três dias e mais sete dias, esperneei, pontapeei, gritei, chorei. Chorei acordada, chorei a dormir, chorei a sonhar, chorei a ressonar, enfim. Quis arrancar a minha parte doente dentro de mim, com as minhas próprias mãos. Não consegui, como é óbvio.
Os dias foram passando, nem sei muito bem como e aquele dia que tanto esperava, que tanto precisava, que tanto desejava, finalmente chegou. Sequei as lágrimas, calcei os meus saltos altos e aceitei que estava doente. Aceitei que a cura dependia de mim, da minha sanidade, da minha dedicação à alma, da minha fé. A partir daí, tudo mudou na minha vida. Tudo mesmo.
A luta contra o cancro é simplesmente uma luta contra o medo. Se o medo nos vence, não há volta a dar.
Muito honestamente, não concordo com aquelas frases que as pessoas me têm dito, e eu sei que me dizem por amor, com carinho, porque não sabem bem o que dizer. Sim, porque eu já estive desse lado, e irei regressar.
“És forte; és grande; vive um dia de cada vez; muita força; vive como se não houvesse amanhã; celebra a vida; o cabelo cresce e mais forte e bonito; és linda de qualquer maneira”, etc, etc, etc.
Agradeço do fundo do coração estas palavras, que todos vocês já me disseram um dia, mas, para mim, o que realmente me guia, me faz acreditar e me conforta, dentro do possível, é pensar que o meu problema faz parte do meu percurso, aqui na terra, aqui na vida. Assim como um exame que se faz na faculdade, ou um jogo de ténis, ou a preparação de uma reunião de trabalho, em que ambicionamos obter êxito, também com a doença é preciso estudá-la, criar estratégias para nos defendermos, definir metodologias para atuar contra o medo, fazer uma cuidada leitura de jogo para ganhar e ter, acima de tudo, muita fé!
Não é por acaso que vocês estão aqui hoje! Nesta sala, estão reunidas as fases da minha vida, até aqui. Exceto a minha infância, pois não sei muito bem onde a passei.
A minha adolescência foi marcada pelo sabor da praia, do picadeiro, das paixões tontas, das conversas descabidas, da irreverência sobre tudo e sobre nada, das juras de amizade para o resto da vida, das gargalhadas que enchiam as nossas caras de lágrimas. Obrigada, Paula Caldeira! És a minha irmã afetiva!
A minha formação académica. Os espirros provocados pelo pó dos livros da biblioteca, as jantaradas, as noitadas, as sessões de estudo, os bolos de chocolate feitos às cinco da manhã, o ketchup nas pantufas daquelas que iam para a noite e nós ficávamos a estudar, a queima, a latada, a serenata, o grito académico, as lágrimas, as nossas confissões. Aprendemos tantas coisas juntas, crescemos e a nossa amizade veio atrás, acompanhou-nos todos estes anos. Obrigada Xana!
A minha realização profissional…Tony Bennett disse um dia, numa entrevista, que nunca trabalhou na vida, pois faz aquilo que gosta, rodeia-se de pessoas certas, e isso é pura felicidade. Eu penso exatamente como ele. Ao longo destes anos de trabalho, dedicação e muita teimosia, tive e tenho o privilégio de me aborrecer e de me divertir a trabalhar com pessoas diferentes de mim, que me acrescentam sempre algo à minha essência, que me alertam, que me aturam, que me ouvem, que sofrem comigo, que se riem, que me abraçam e me confortam. Obrigada Ângela!
O Ténis. Falar do Ténis é falar de divertimento, descontração, alegria. É o espaço onde corremos atrás das bolas, porque queremos, porque desejamos, porque nos sentimos felizes. E conseguir sentir tudo isto, de uma só vez, nos tempos de hoje, é pura e simplesmente um privilégio.
Vocês preenchem-me, vocês dão-me paz, vocês acalmam-me. No Ténis, o sol é diferente, o cheiro a maresia é diferente, o barulho das ondas é deferente, o cheiro ao refogado do restaurante é como é, o cantarolar das gaivotas, que tanto nos desconcentram, é único, o vento que tantas vezes altera o trajeto das bolas é desafiante. E, depois… é a raqueta que precisa de um grip novo e por isso não estou a jogar bem; as discussões, que são a da prata da casa, ao tentarem convencer-se, a eles próprios, que a bola foi dentro e até foi bem fora; Assim não dá!. A bola foi fora! Não senhor, foi boa! Não jogo mais contigo! Gargalhada geral! Andas a precisar de uns óculos. Então, já está na hora de largarem o court pois é a nossa vez de jogar; Bem!… viste aquele smash?
Nunca me senti triste no Ténis, nunca! E foram tantas as vezes que antes de pisar o court me senti angustiada, preocupada com a vida, stressada. O Ténis tem um poder mágico, e a magia vem das pessoas que lá se encontram. Obrigada Margarida! Obrigada Lita! Obrigada Paula! Obrigada Lurdes!
Peregrinação a Fátima. O espírito que move os nossos pés até Fátima, eu jamais conseguirei descrever nesta página. Nós, peregrinas, sabemos do que falamos. A fé move-nos e contagia os nossos sorrisos, a nossa união, a nossa alma agradece e a vida fica muito mais simples. O cheiro incomparável da terra húmida da madrugada, o silêncio que nos acompanha, respeitando os nossos próprios silêncios, o som das folhas das copas das árvores que parecem comemorar a nossa passagem por aquelas bandas. Tudo é mágico, é intenso, é extenuante, é felicidade. A nossa partilha é delirante! Ninguém é deixado para trás, jamais! Obrigada Sónia! Obrigada Cristina! Obrigada Sílvia! Obrigada Mafalda!
Amigas do século XXI – O que dizer? Falar dos seus gestos? Falar dos olhares de pessoas que me conhecem? Falar de sorrisos contagiantes que destronam qualquer má disposição? Falar de loucuras bem passadas? Falar de piqueniques? Festas? Conversas sobre nada e sobre tudo?
Perdi-vos! Perdi-vos nestes últimos anos. Deixei-vos! Desculpem!
Preciso de vocês nas minhas vidas. Tenho saudades vossas. O resto dir-vos-ei mais tarde. Obrigada Leninha! Obrigada Marta! Obrigada Vitória! Obrigada Sofia! Obrigada Cristina! Obrigada Sara!
Família – Não a tenho aqui toda. Nem de perto, nem de longe! Aqui tenho algumas pessoas da nova família que conheci, depois de muito me conhecer. São pessoas que me abrigam, são pessoas que me conquistam, são pessoas que me fazem acreditar que é possível avançar ou recuar e, que, por vezes, a forma como fazem não é clara, e que tudo depende de mim, das minhas escolhas, das minhas certezas, dos meus princípios. Obrigada Rafaela! Obrigada Lena! Obrigada Cristina!
Rita, a minha mais recente amiga. Conhecia-a na enfermaria do Hospital, colega de quarto. Quando a vi, reagi mal, muito mal! Dirigi-me à minha cama, e virei-me de costas para a Rita. Ela continuou, muito descontraidamente, a fazer palavras cruzadas, com um gorro na cabeça, sem sobrancelhas e sem pestanas. Senti-me magoada, muito magoada. Senti-me cruel, mimada, estúpida. Mais tarde, comecei lentamente a virar-me na cama e pensei, nada é por acaso!
O pavor que tinha da quimioterapia, o pavor que tinha de ficar careca, o pavor que tinha de ficar com o tom de pele cinzenta, esse pavor aos poucos foi desaparecendo. E isso devo à Rita.
Não sabia que existiam pessoas como a Rita, até ser internada. Não vou aqui falar dela. Não o devo fazer. Só quem vive este problema é que pode perceber o que somos, ou naquilo em que nos transformamos. E para melhor, garanto-vos.
Minhas amigas, apresento-vos uma nova Cláudia:
Sinto-me nua, despida!
Despida de preconceito!
Despida de rancor!
Despida de desgosto!
Despida de stress!
Despida de intriga!
Despida de futilidade!
Despida de maldade!
Despida de obsessão!
E um dia, muito próximo, espero que me sinta despida de medo.
Ontem, rapei o cabelo. Fui sozinha, porque tinha de o fazer sozinha, ao cabeleireiro, desafiando a minha coragem e a minha ira.
Despedi-me delas, dizendo “Então até daqui a uns meses”, e o silêncio sentiu-se.
Entrei no carro, e sem saber como nem porquê, subi a serra, em lágrimas completamente descontroladas. Estacionei o carro perto da capelinha, entrei pela serra dentro e procurei a árvore mais antiga, com o tronco mais forte e gigante, descalcei-me e abracei-a. Abracei-a com tanta força, mas tanta força, que pude sentir o calor das suas raízes, as heras que a envolviam colaram-se ao meu nariz, o perfume estonteante da seiva, a terra a beijar-me os pés, a madeira a enxugar-me as lágrimas, fizeram-me sentir viva! A natureza abraçou-me, acarinhou-me, tranquilizou-me, como se fosse uma mãe.
Alguém aqui já abraçou uma árvore? Descalça? Façam-no! E não façam só nos momentos de aflição ou tristeza. A sensação é inexplicável.
Este estado em que me encontro no percurso da minha vida, fez-me travar a fundo! Reorganizar ideias, alterar prioridades, valorizar o inimaginável, desvalorizar coisas de que jamais abdicaria, aprender a amar de outra forma, de perdoar o que me impedia de ser feliz, rejeitar o que não acrescenta em nada à minha felicidade e, principalmente, tratar, cuidar, respeitar e entender melhor a minha alma, o que se passa dentro de mim, a minha fé e como posso redirecionar o melhor de mim aos outros.
Quem me conhece sabe que eu adoro viver. Quero viver até esquecer que existo, e isso vai acontecer!
Cláudia Simões Silva – 04.02.2016
Nota do BigSlam: A Cláudia é uma amiga que conheci há uns bons anos no Tennis Club da Figueira da Foz e que venceu a luta contra o cancro. Seis anos depois deixo aqui no nosso “Ponto de Encontro!” o seu testemunho.
A vitória aconteceu!
8 Comentários
Cláudia Simões Silva
Muito obrigada pelo carinho das vossas palavras🎈 Espero que tenham gostado de ler as entrelinhas deste texto. Porque foi lá que encontrei o caminho para o meu sucesso. O sucesso da vida🍀
Sempre ao dispor
Beijinhos
Bem hajam
BigSlam
Olá Cláudia, o BigSlam é que agradece a tua narrativa sobre este tema, vivida na primeira pessoa.
Foram vários os emails e telefonemas que recebi a elogiarem o teu artigo. Parabéns!
Um beijinho muito especial de todo o BigSlam.
Augusto Martins
Maravilhosa lição de e para a vida.
Vale a pena ler até ao fim e reler com frequência.
Grande abraço de agradecimento, com os meus desejos de muita saúde.
Manuel Martins Terra
Enorme testemunho de alguém que não atirou a toalha ao chão, e que com muita coragem, parou, escutou e olhou para a vida, desafiando o seu traiçoeiro inimigo. Lutou com todas as suas forças, e sobressaindo em si uma fé inabalável, deu a volta à doença, triunfando na luta contra o cancro. Grande lutadora, que mereceu esta vitória e que volta a sorrir para a vida. Parabéns, e muita saúde para o caminho que ainda tem que percorrer.
Renato Caldeira
A vida, é como subir uma montanha. As forças vai diminuindo, mas a visão periférica aumenta. O segredo está no querer, no acreditar. Linda narrativa, que nos incentiva a não baixar, nunca os braços!
Paulo Carvalho
Li com muita atenção, palavra a palavra ,este texto, sobre uma parte importante da vida da Claudia.
Não admira gostar de uma modalidade de competição, porque se nota, naquilo que escreve, ser uma verdadeira lutadora com muita garra!
Notei que a Claudia tem o mesmo apelido de um ex-colega e amigo meu, dos tempos de Macau, Simões da Silva, quem há muito, não contacto, que gostava também de jogar ténis, tal como eu regularmente fazia mas, devido a um acidente, deixou de o praticar, para sua grande mágoa!
Ao ler este artigo, liguei-a a 2 livros que adquiri no ano passado e, cuja autora, faz parte do Museu Nacional das Mulheres Famosas dos EUA, como investigadora na área da Psiquiatria, chama-se Elisabeth Kubler-Ross.
Num dos seus livros, apresenta um trabalho de investigação sobre as diversas fases da luta que a Claudia e tantas outras pessoas atravessaram. Para mim, no entanto, ainda mais importante, é o seu último livro, tendo-me chamado a atenção, uma frase que atrás li, que foi: …. “E um dia muito próximo, espero que me sinta despida de medo”!…(no entanto o medo a que a escritora se refere, é um tanto diferente, mas ainda mais importante)…!
Muita felicidade Claudia. (Se fosse mais novo, desafiava-te para uma partidinha de ténis a pares, fazendo eu dupla com o meu irmão)…!
Manuela
Continuação de óptima saúde e bênçãos celestiais.
josé carlos alves da silva
Muito bom ler e saber que podemos vencer, fortes, unidos com Família e Amigos e motivados com nós próprios. Parabéns Cláudia pela vitória. Tudo corra bem. Um abraço