Cabora Bassa – Um mega empreendimento em África
Continuando a recordar aquele imenso território de Moçambique, não podia deixar trazer a lume o que foi considerado o maior investimento português no chamado Império Ultramarino, referindo-me obviamente à construção da Barragem Hidroelétrica de Cahora Bassa (na pronúncia cinhúngue- dialeto local).
A Barragem situa-se no gigantesco Rio Zambeze, na Província de Tete, a 120 Km desta cidade. É a norte do torrão mais quente de Moçambique, que o Rio Zambeze marca o destino com a história, depois de atravessar a Zâmbia, República Democrática do Congo, Angola, Zimbabwe é pela força e audácia homem, dominado o seu curso em Kariba, localidade zimbabueana.
As populações nativas, designavam a chamada garganta como “Kahoura- Bassa”, que na grafia local significava o fim do trabalho para os hábeis remadores, numa efetiva alusão às cachoeiras, que os impediam de seguir viagem transportando comerciantes europeus que subiam o Rio Zambeze, desde a foz e que chegados à garganta com cerca de 38 metros de largura, entre as margens, ali desembarcavam devido aos perigos iminentes do revoltoso caudal.
Há muito que o local vinha sendo observado por geólogos e técnicos hidráulicos, estudos inseridos no Plano e Desenvolvimento do Vale do Zambeze. A engenharia portuguesa preparava-se em terra, para domar o longo e profundo rio que mantêm uma secular intimidade com os íngremes rochedos de agregados graníticos, descortináveis em ambas as margens que a natureza criou, dotadas de uma biodiversidade natural até então sem sofrer intervenção humana. A paisagem era de rara e de incontestável beleza que cativava ao primeiro olhar. A inteligência e força do homem iriam traçar um plano já definido, no sentido de enfrentar todos os perigos de um rio de força desmedida, tentando transformar água armazenada em energia hídrica.
Depois de 1967, terem sido analisados todos os dossiers afetos à construção da barragem, dois anos depois o Estado Português lançou o concurso para a construção da Barragem de Cabora Bassa, adjudicada à ESCOM (Distribuidora de Energia) e à poderosa ZAMCO, consórcio heterogénico de empresas alemãs, francesas, italianas, suecas e sul-africanas. Tem lugar então, a maior operação logística de que há memória no espaço português. Houve necessidade imediata de apetrechar o porto marítimo da Beira, com gruas hercúleas para fazer desembarcar materiais e equipamentos oriundos da velha Europa. O estaleiro estabelecido no Songo, rapidamente foi ganhando volumetria com a chegada de efetivos humanos e máquinas.
Houve necessidade de ligar a rede rodoviária do litoral até à cidade de Tete, numa extensão de 130 Quilómetros, assim como construir traçados em terra batida de contornos serpentinos, para ligar o Songo até ao leito do rio,
para transportar equipamentos excessivamente pesados, tais como turbinas, rotores, geradores e transformadores a somarem centenas de toneladas. Tiveram que ser construídos especificamente camiões longos com vários rodados, que depois de cumprida a missão nunca mais tiveram utilidade.
Nos finais de 1969, começam no terreno os trabalhos de construção, havendo lugar à dinamitação dos rochedos e abertura de escavações.
Em maio de 1972, foram construídas as chamadas ensecadeiras instaladas nas margens para o desvio dos 450 m3/ segundo, caudal médio do rio e começava a ser esboçada em terreno seco, a implantação das estruturas do imponente complexo hidroelétrico. A primeira grande batalha tinha sido vencida e sublinhada com emoção e aplausos, por parte do pessoal operário e quadros superiores. A imponente barragem ia avançando ao ritmo previsto, até alcançar 171 metros de altura, com espessura entre 5 e 21 metros, equipada com cinco turbinas independentes, e com uma galeria central com 220metros de comprimento, 29 metros de largura e 60 metros de altura.
As obras consumiram meio milhão de metros cúbicos de betão, a ser fornecido pela Cimenteira do Dondo. O Songo, sito no planalto a 1200 metros de altitude, berço da pomposa barragem, foi alargando mercê do desenvolvimento desencadeado pela chegada de milhares de operários de várias regiões de Moçambique, acabou em julho de 1972, por ser elevada a categoria de vila, trazendo mais progresso para a região e hoje local aprazível recheado de elegantes moradias ajardinadas, artérias asfaltadas e dotada de todas as infraestruturas sociais e desportivas necessárias.
Os trabalhos diários da barragem iam sendo assistidos pelo Laboratório de Engenharia Civil, em Lisboa, e pelo Laboratório do Solo de Moçambique. Para supervisionar todas as operações do gigante complexo, foi designado o engenheiro Braz de Oliveira, Diretor dos Serviços Regionais de Fiscalização de Cabora Bassa, homem de pulso forte e de firme determinação, cujas ordens de grande melindre técnico assinava por escrito.
Finalmente em 1974, pouco depois da revolução de abril, o sonho deu lugar à realidade e era inaugurada a Barragem de Cabora Bassa, com os seus 303 metros de arco, ainda hoje considerada a maior em volume de betão construída em África, enchendo a albufeira com 250 Quilómetros de extensão e 26 metros de profundidade. Produz eletricidade com capacidade superior a 2000megawatts. A par dos trabalhos na barragem, iam sendo instaladas no terreno as torres que transportariam dois ramais de muita tensão, numa extensão de 1000 Quilómetros, até à Central Apollo, em Pretória. De território sul-africano, partiam as linhas de muita tensão, atravessando a fronteira moçambicana, até à Central de Benfica, na então Lourenço Marques, servindo a cidade e arredores, tanto mais que a velhinha Central Térmica da SONEFE, estava no limite da sua capacidade.
Cabora Bassa, abastecia Moçambique com (250MW), África do Sul (1100MW) e Zimbabué (400MW), havendo ainda a hipótese considerada de fornecer o vizinho Maláui.
Mas como não há bela sem senão, aquando dos acordos de Lusaka, pelo meio de muitas hesitações, decidiu-se que a Barragem de Cabora Bassa, ficaria sob a responsabilidade do estado moçambicano (com 18% das ações) cabendo ao estado português (com 82% das ações), assumir as dívidas decorrentes do financiamento internacional contraído para a construção da barragem. A ideia seria manter a participação de Portugal na Hidroelétrica de Cabora Bassa, até à fase da cessação da dívida em curso. O que outrora foi um sonho, rapidamente começava a dar lugar a um pesadelo, justificado pelo eclodir do conflito entre a resistência e as forças governamentais moçambicanas. Renamo e Frelimo, de costas viradas foram intensificando a guerra civil instalada e a partir de 1980, as torres de transporte de energia foram sendo sabotadas e consequentemente interrompido o fornecimento de corrente elétrica à África do Sul, consumidor prioritário da energia produzida na Barragem de Cabora Bassa. Portugal, para além de não obter receitas, teve ainda que assegurar a manutenção e conservação dos equipamentos do complexo. Afiguravam-se tempos difíceis e o mega investimento surgia já como um elefante branco, com repercussões na dívida externa portuguesa.
Só em 1996, após 16 anos de uma guerra fatídica, foi estabelecido o acordo de paz que permitiu que começassem no terreno, os trabalhos de colocação de novas torres e linhas de transporte de corrente. Equivale a dizer que só decorridos vinte anos depois, a Barragem de Cabora Bassa, voltava a produzir e a gerar receitas. Até então, o imbróglio foi gerando um contencioso económico-financeiro, extensivo á instabilidade diplomática entre Portugal e Moçambique, ávidos de uma solução a contento para ambas as partes.
Em 2006, no âmbito da reconversão, Portugal viria a reembolsar em duas tranches, a quantia de 1, 250 milhões de dólares (metade do valor com que foi empreitada em 1969 a Barragem de Cabora Bassa), ficando o Estado Português com uma participação de 15%. Em 2008, numa cerimónia no Songo, Portugal retirava oficialmente a sua posição maioritária e em 2012, vendia a restante percentagem na HCB, dividida em iguais partes, à EdM (Eletricidade de Moçambique) e à portuguesa REN (Redes Energéticas Nacionais). O acordo final trouxe um desanuviamento nas relações diplomáticas, e uma cooperação que se deseja profícua no capítulo das energias renováveis em Moçambique, país com grande potencial no campo das energias limpas.
Por fim dizer, que todas as palavras serão sempre insuficientes para classificar a magnificência de uma obra, quase de ficção erguida pelo braço do homem e com suor de muitos portugueses, moçambicanos e alguns técnicos estrangeiros, que muito honra a criatividade da engenharia portuguesa, como mais tarde reconheceu o Presidente Samora Machel, que considerou o gigante complexo, representativo da união entre dois povos irmãos.
A Barragem de Cabora Bassa, é hoje um símbolo de progresso, que Moçambique vai gerindo bem, e que ficará para sempre nos anais da história da presença portuguesa em África.
Veja o vídeo da Barragem de Cahora Bassa:
Manuel Terra – Fevereiro de 2021
10 Comentários
olimpiocosta@outlook.pt
A cumprir serviço militar em Tete (Tchirodzi) em 1973/1974, trabalhei neste empreendimento nas férias de 1973 como soldador. Uma experiência que recordo com nostalgia. Uma obra gigantesca!
Alvaro Campos de Carvalho
Antes de mais devo dizer que tive muito gosto em ver um artigo tão extenso e documentado sobre Cahora Bassa, que bem conheço. Nos anos 60, mwana, por lá andei (ainda nos rápidos) com o José António Pereira (para o pessoal da Beira – o Pereira dos Jacarés), em 1970 lá comecei a minha vida profissional e, muito mais recentemente, há pouco mais de 3 anos, por lá estive ainda num dos projetos que será provavelmente já quase um dos últimos da mesma.
Agora, e se mo permitem, gostaria de especificar um ou dois pontos:
1º Cahora Bassa não é xiNhungué. A origem do nome Cahora Bassa sempre suscitou muita discussão e, feliz ou infelizmente, ainda não teve resposta definitiva. A complexidade da identificação da origem do nome é perfeitamente documentada por António Cabral no seu Dicionário de Nomes Geográficos de Moçambique editado em 1975 e disponível online https://www.malhanga.com/bm/dicionario_nomes/mobile/index.html,
2º O adjudicatário da obra foi a ZAMCO (Zambezi Consortium) que, por ordem de importância, compreendia empresas francesas, alemãs, sul-africanas, italianas, suecas e portuguesas. A ESKOM era o cliente de referência do empreendimento,
3º O caudal médio do Zambeze, em Cahora Bassa (intake) não é de 450 m3/s, mas sim de cerca de 4.500 m3/s, tendo a barragem uma capacidade de descarga de 14.000 m3/s,
4º A linha que alimenta a rede da ESKOM pela subestação Apollo é uma linha dupla bipolar de corrente contínua (2 X +/- 533 kV; 1.400 km) enquanto que as linhas que alimentam o Zimbabwe (400 kV) e, a partir da subestação do Matambo, o centro e norte de Moçambique (220 kV) são de corrente alternada . O projeto de alimentação do Malawi já arrancou.
5º No âmbito do protocolo de reversão (lembro que a dívida tinha sido transformada em capital e, depois, a empresa reavaliada) o Estado português recebeu 950 milhões de US$ para passar de 82,5% a 15% do capital. Depois vendeu 7,5% à REN por 38,4 milhões de Euros, mais 42 milhões de US$ pelos restantes 7,5%. No total Portugal recebeu cerca de 1.040 milhões de dólares pelos 82,5% que detinha na HCB. O capital da HCB é atualmente detido pelo Estado Moçambicano 85%, a REN 7,5%, Bolsa de Maputo 4% e a própria empresa 3,5%.
Zé Carlos
Cahora ou Cabora-Bassa demonstra a capacidade do monstro Português.
Por um lado tivemos visionários com o ‘know how’ para enveredar num projecto que reuniu 15 companhias de Portugal, A. do Sul, Itália, França, Suiça e Alemanha Federal no consórcio ZAMCO, para construir algo de utilidade básica para o desenvolvimento de um subcontinente e seus povos, apesar das dificuldades em manobrar idéas progessistas num clima de alta desconfiança por um regime político ultra conservativo.
Por outro lado, tivemos e ainda temos teoristas e demagogos de ideologias da treta que influenciaram e orquestraram a destruição da grande parte daquilo que era a prósperidade futura e o progresso desses mesmos povos cá e lá.
No meio, encontram-se as massas até hoje contínuamente manipuladas por manobras de bastidores, disinformação, com segredos e segredinhos misturados à falta de suficiente educação, justiça e transparência, tanto em África como na Europa.
Quanto às consequências económicas para os Portugueses claramente o Ministro Teixeira Santos e Primeiro Ministro Sócrates, nunca ouviram falar de “constructive engagement” e “economical/political leverage” entre credores e devedores.
Chichorro Rodrigues
Grande obra, meu pai Eng. Chichorro sempre recordou, assim como toda a família dessa grande obra, hoje, ainda considerada como a maior obra de Moçambique.
Manuel Martins Terra
Caro amigo João Costa, obrigado pelo teu aparecimento neste espaço de comentários e sem dúvida que a Barragem de Cabora Bassa, é indiscutivelmente uma obra magistral e ousada por parte da engenharia portuguesa em África, que só teve paralelo na construção da Barragem do Assuão, no Egito, inaugurada em 1970, depois de 10 anos de construção, com projeto russo. No tocante á tal frase ” Hidroelétrica de Cabora Bassa o orgulho de Moçambique” ela é da responsabilidade da HCB, que a utiliza como spot publicitário. A verdade é que todos nós a ajudamos a pagar. João Costa, um grande abraço do amigo Manuel Terra.
João Costa
Olá, bom dia
Amigo Manel, não posso estar mais de acordo com este teu comentário. Sei que a “tal frase” a que faço referência no meu comentário era/é da responsabilidade da HCB que a utiliza como spot publicitário. Só que para mim o erro está em referir Moçambique, e não Portugal!… Moçambique agora só está a usufruir de uma obra para a qual nada contribuiu, e até se opôs à sua construção utilizando a guerra de guerrilha.
Mais uma vez, todos que lemos este teu post, somos “obrigados” a dar-te os parabéns pelo teu trabalho de pesquisa.
Um grande abraço deste teu amigo.
josecarlosnunes28@gmail.com
Excelente texto relacionado com uma grandiosa obra dos portugueses. Visitei muitas vezes em 1971/72 pois na altura trabalhava para a SONAP/MOC ,que fornecia combustíveis e lubrificantes para aquelas imensas máquinas.
Fernando Machado Almeida
Mais um investimento ruinoso para o Estado Português depois de saberem que mais dia menos dia tinham que entregar aquilo a comunistas. Paga Português que é a única coisa que sabem fazer melhor. E caladinhos….
Viva o socialismo da treta
Braga Borges
Belíssimo trabalho. Gostei de ver a “minha SONEFE.”
João Costa
Olá Tony
Lembras-te como era conhecida entre nós, jovens na altura, a tua SONEFE?
– Sociedade dos Negócios Felizes.