A Máscara de Sídero
… Entretanto, observo como ela geme de felicidade num parto natural, perto do sopé protegido. E como, no instante seguinte, exulta o peito negro musculado do guerreiro Bakongo com o rebento recém-nascido nos braços.
-Simetre, meu amor, é um minino rapaz o nosso filho!
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Ressoam os batuques pela mata.» (p.205)
Termina assim o mais recente livro de José Luís Ribeiro, nascido em Angola no ano de 1957, e que vive há décadas na Figueira da Foz. Licenciado em Geografia, doutorado em Geografia Física, dá aulas na Escola Secundária Dr. Joaquim de Carvalho, na Figueira da Foz. É autor de livros científicos e de artigos em revistas de especialidade, sendo “A Máscara de Sídero”, a sua primeira publicação na área da ficção.
Segundo o autor, «Não é um drama, são muitos dramas, que nos remetem para as inquietações, as máscaras que todos temos, a morte e o que há (ou não) depois dela! As forças que se contradizem, os acasos, ou pelo contrário, o destino!»
O livro editado pelas «edições vieira da silva – livros que contam», foi apresentado no CAE (Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz), em cerimónia que contou entre outros, com a presença do Prémio LeYa 2015, António Tavares (1960_Angola), com o romance “O Coro dos Defuntos”, parafraseando que, «…escrever um livro é um acto de coragem, tem sempre algo de nós, expõe-nos!»
Quem se expôs e deixou algo de si, também, foi o figueirense, Manuel Coelho, professor, colega e amigo do autor de «A Máscara de Sídero», a quem coube em felicidade, a magnânima apresentação da obra, num enredo de excelência, que a todos prendeu, esclarecendo entretanto, a distinção entre memória (mnéme) e a recordação (anamnésis) dos gregos do Classicismo.
Para memória futura, recordando uma bela tarde de um sábado de Inverno, um dia vibrante de Novembro (12/11/2016), compartilho na íntegra, com entusiasmo e admiração, o contributo do senhor professor Manuel Coelho, para uma leitura atenta da obra primeira, no(s) drama(s) de José Luís Ribeiro, ou de nós!
_Tenho dito, vamos ao lançamento, pois, “o espaço sideral possui novas dimensões onde se poderá morar” (Manuel Coelho):
A Máscara de Sídero, rosto de todos os nomes?
– Contributo para uma leitura da obra homónima de José Luís Ribeiro.
Manuel Coelho
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método (…). Dito isto, expirei às duas da tarde de uma sexta-feira do mês de Agosto de 1869.” (2, p.13)
Começa nestes termos a bem humorada obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra publicada em 1880 pelo escritor brasileiro Machado de Assis.
Brás Cubas, o narrador e protagonista, conta -nos estas memórias estando já morto e bem morto. É o que se depreende da dedicatória inicial, e cito:
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas. ” (2, p.11)
Sei que o José Luís Ribeiro não teve em mente qualquer aproximação à obra de Machado de Assis. De contrário, talvez considerasse a possibilidade de intitular o seu romance Memórias de uma máscara, ou Memórias póstumas de um nome.
Com efeito, também “A Máscara de Sídero” é um relato em primeira pessoa, feito por um morto enquanto decorre o seu velório e depois, já sepultado. Portanto, como Brás Cubas, um narrador também ele morto, e bem morto. Mas o que este narrador não mostra é qualquer “saudosa lembrança” da primeira dentada dos vermes, os quais nem quer ver por perto.
“Pai, traz as tuas tropas e desinfecta-me para que eu não morra. Vejo bichos devoradores em busca da memória e eles hão-de querer roê-la até que não haja uma réstia do discernimento capaz de distinguir entre o abjecto e o requintado prazer, entre o compasso suave do paraíso e os ritmos esfuziantes do inferno, entre a conquista incondicional e a entrega quase servil.” (4, p.145)
Hirto, sem poder simular sequer um “adeus sumido” aos amigos que em redor o velam, sem poder arquear a sobrancelha de espanto, por ver ali porventura alguém que há muito não via ou que não contava ver, imóvel e no entanto incrédulo e inconformado com a sua sorte.
Pergunta:
“Achas possível que deixem de ver -me, meu pai?
Em quem acredito, afinal, se não em ti?” (4, p.10)
Quem é este narrador, que assim se recusa a morrer?
A resposta nada tem de óbvio. Chamemos -lhe Carlos, chamemos -lhe máscara, chamemos -lhe HOMEM!…
Certo é que este é um morto difícil de morrer. Poderia resignar-se à paz da sepultura e ao esquecimento, virtudes apreciadas pelos cadáveres, sempre tão conformistas. Mas não: este não se resigna. O mesmo espírito que considerava o corpo como suporte passageiro, agora vê-se incapaz de partir porque “resiste a ser enterrado pela solidão” e pela pena de jamais vir a ser a alma que um dia projetou.
Poderia integrar o rebanho dócil dos crentes, como aqueles que em seu redor estão rezando, enquanto o velam. Mas não: considera-os ovelhas obedientes, para quem a oração não passa de uma “prótese”, uma muleta para chegar ao céu que um Deus distante lhes promete.
“Aqui na terra como no céu”, cita o Autor, em epígrafe, este excerto do “Pai Nosso”, a conhecida oração católica. Este é um morto que se recusa a obedecer, a aceitar que seja feita a vontade do Pai “urbi et orbi“, isto é, na terra como no céu.
Este é um morto, além disso, para o qual até será difícil encontrar sepultura, quer na terra quer no céu. Não lhe agrada a perspetiva de ir para o céu e ficar lá, nem de “ir ao céu e voltar com os pés pouco assentes na terra.” (4, p.7)
Em vez da paz do céu que Deus lhe promete, pela boca do padre ali à sua frente, em vez dessa paz, Carlos prefere imaginar-se num campo transbordante de possibilidades em viagem pelo espaço sideral, onde possa renascer num outro espaço, num outro tempo, numa outra dimensão. Porque é aí, e cito, que “o amor cresce, robusto e jovem, como na génese dos tempos, vagueando livre pela diáspora dos mitos.” (4, p.8)
Contra vontade dele, acabaram, naturalmente, por sepultar Carlos, na companhia da sua máscara. E ele? Para já enterrado, mas de modo nenhum convencido — nem sequer vencido (e ainda bem para o leitor: se não, a história acabaria por aqui!).
É assim que, passados três meses, ainda se entretém com alucinações, que não param de crescer. O narrador observa:
“Em vez de secar, incho; em vez de vazar a memória, carrego mais memória.” (4, p.159)
Ao oitavo mês, ainda o pobre chama pela mãe:
“Mãe, querida mãe! Por que não tiras daqui o teu menino?
Tenho as costas cheias de bichos, os pés, a cabeça, e não consigo coçar-me…” (4, p.159)
E um belo dia, aquele “saco de células” está praticamente refeito. Até a sua máscara, ali ao lado, considera um abuso que o narrador queira ainda “reciclar-se”.
Afinal renascer para quê?
Para dar corpo a outro equívoco? — Pergunta a máscara, verdadeiro alter-ego de Carlos.
“Acho normal que te devorem a carne até aos ossos e admito ainda que o façam a contragosto, com o sacrifício da agonia, mas custa-me aceitar que reciclem o desperdício ao ponto de adivinhar a criação de um artifício, o nascimento de um novo equívoco.” (4, p.160)
Pelo que foi exposto até aqui, poder-se-á pois considerar “A Máscara de Sídero” um livro de memórias. Corrijo: um livro sobre a memória e sobre a recordação.
Os gregos do Classicismo estabeleciam esta distinção entre memória (mnémè) e recordação (anamnèsis). Para eles, uma coisa era a faculdade de recordar os acontecimentos e a história de vida pessoal, situando-os num específico quadro temporal. Coisa diferente era a Memória, que os gregos personificavam na deusa “Mnémosyne”. Por um lado, é próprio do homem recordar, capacidade que, no entanto, implica sempre um certo esquecimento. E isto não tem que ver apenas com o caráter seletivo da memória individual e histórica. Tem sobretudo a ver com o seu caráter limitado, isto é, de estabelecer limites ao tempo. Pelo contrário, “o passado desvendado [pela Memória (mnémè)] é mais que o antecedente do presente: é a sua fonte.” (3, p.103). Diversamente da Recordação, o rememorar permite ao homem descobrir a origem, recuando até ao fundo do ser.
Na obra em apreço, o leitor acede a esse lugar primordial que é a sanzala, de que Maquela constitui uma concretização histórica. Maquela do Zombo, sanzala perdida na imensa Angola, lugar do povo Bakongo, homens, mulheres, crianças “contaminados por hábitos ancestrais” — como refere o narrador. Maquela, um ponto perdido numa natureza primordial, genesíaca: “as pradarias douradas e manchas de floresta virgem, por vezes tão cerradas como breu numa noite nublada.” (4, p.19)
Nesse lugar-arquétipo, mas também espaço histórico, nasceu e deu os primeiros passos numa vida com nome. É Carlos, um dos vários Carlos da obra, este nosso narrador que, quando morto, se pergunta:
“Que seria eu se lá tivesse permanecido?
Quem seria eu se não morresse, entretanto?” (4, p.125)
E agora, para ali morto, só mesmo Maquela poderia devolvê-lo à memória, e por esse meio à vida. É que Maquela transformou-se numa “rosebud”, que não se apaga da alma e que a morte traz à tona:
“Ah, como é fresca a memória quando um aroma lhe solta os atributos!” (4, p.17)
Nesta viagem de retorno, o narrador elege como interlocutores ora a mãe ora o pai, alferes do exército colonial, em comissão de serviço naquela região. Em tom coloquial, Carlos revive e faz o leitor reviver o ambiente, por vezes opressivo, de Maquela:
“Mamã, mamã, por onde andas tu que não vens libertar -me do bafo tórrido que queima o próprio sofrimento? Por que me pariste aqui, largado na savana infestada de insectos…?” (4, p.14)
Recordações, e com elas a saudade de quem ficou enfeitiçado, para sempre:
“E os batuques, mãe, por que se despedem eles (…) parece que alguém nos enfeitiçou as almas!” (4, p.55)
Memória também de afetos, entre dois “meninos”, Chitende e Carlos. E que importa que um seja branco e o outro negro…? Quando Chitende, com uns trapos, amarrava Carlos ao seu corpo para o trazer ao colo, não se tornaram eles irmãos siameses?
Alguém poderia separá-los?
Responderemos a esta questão, mas por ora retomemos uma outra, que antes deixámos sem resposta:
Quem é o narrador, afinal?
“Que pergunta despropositada”, estareis vós a pensar!… Carlos, obviamente.
E seria óbvio, seria… Isto, se ao pai do narrador, os indígenas, não tivessem oferecido uma máscara, em sinal de gratidão. Ora há um problema com as máscaras: é que elas acabam por dar a todos os nomes um mesmo rosto. E assim, poder-se-á afirmar que todos somos Carlos, ou Manéis, ou Josés…
José Luis Ribeiro
Os nomes que importam, se a máscara da vida é a mesma em todos nós — máscara de HOMEM: nascer, crescer, amar, matar, morrer…?
Sim, o nome que importa?
Mas, por outro lado, não deixa de ser verdade igualmente que toda a história tem as suas personagens, tal como verdade é também, nunca se viu uma personagem sem nome. O Autor decidiu, suponho que sem nenhuma razão em especial, atribuir o nome “Carlos” ao narrador-protagonista. Chamar-lhe José teria sido opção mais arriscada: estaria eu e este ilustre público já para aqui a fazer insinuações do género: “isto é obra autobiográfica; esse José Travassos do romance é o próprio Autor que está aqui ao lado, o José Ribeiro…”.
Por isso, considero avisado que o Autor tenha chamado José ao pai do narrador e a este, Carlos.
E porque a vida dos homens, no fundo, é a mesma em todos eles, avisado terá sido também multiplicar-se este nome por três histórias de vida. Na narrativa temos então: Carlos, o puto de Maquela, filho do alferes Travassos; Carlos, o jovem de Luanda, filho de um sargento colonialista e racista; Carlos, o padre, filho de agricultores transmontanos.
Três personagens, todas elas sem um rosto. Ao longo da obra, nunca ninguém o desvenda, descrevendo-lhe as feições particulares.
Opção avisada do Autor, mais uma vez: para quê dar-lhes um rosto?
E se lho quiséssemos dar, que feições lhe atribuiríamos?
Afinal, são homens, uma mesma máscara multiplicada. Formam um “mosaico de máscaras”, no dizer do narrador: tanto têm rosto seu como têm rosto de outrem.
Mas se não se lhes pode ver a face, seguir-lhes-emos os passos, entrar-lhes-emos na alma – que é o que mais importa.
Regressemos a Maquela, para tentar responder à questão que há pouco deixámos sem resposta: Chitende e Carlos – qual deles negro, qual deles, branco? – esses dois irmãos siameses, quem poderá separá-los?
Li algures que “a maldade é um contexto“.
Tenho as minhas dúvidas se o contexto é aquilo que nos torna maus. A ser assim, Cristo teria razões de sobra para não dar a outra face, mas deu, e até perdoou; e a ser assim, também Hitler não teria razões para fazer tamanha cinza, mas fez.
Por isso, não sei se o contexto é quem veste o homem de maldade, ou se ele já estava vestido antes por ela. Mas que o contexto nos veste, ai isso veste…
Imaginem-se vocês, presumíveis leitores, imaginem-se em Maquela: veem o Buda Cachaceira, um colono chefe-de-posto, com o seu sipaio negro, que, um após outro, violam Manhé, a vossa querida mãe, ali em público, mesmo frente aos vossos olhos…
— Vosso humano coração, que cor então vestiria: alvo perdão ou negro ódio?
Leitor, imagina agora tu que regressas a Maquela: trazes aos ombros o troféu — a pele da primeira onça que caçaste, feito que te fará merecedor de Simetre, uma “mulher de gostar no sério”. E então chamas pela amada Simetre, chamas por Manhé, chamas pelo Pai. Mas a resposta trá-la a mudez do chão calçado de mortos, o silêncio da sanzala feita cinza pela tropa portuguesa.
— O teu humano coração, que farda então vestiria: o verde tropa do “portuga” ou, como Chitende e Koyo, a rota farda do “turra”?
E imagina-te ainda nesse tempo, mas num lugar aqui mais próximo: moras agora em Lisboa e vês teu pai a ser preso; e na prisão, torturado; e depois aparecer morto, porque é do partido vermelho… Mas na escola os teus amigos vestem farda e convivem e divertem-se…
— Teu coração adolescente, que roupa então vestiria: a roupa de que a mãe gosta ou a farda da Mocidade Portuguesa?
– Depois teu coração, que a pouco-e-pouco foi criando um especial gosto por fardas, qual delas vestirá quando for jovem: a que o pai preso e torturado vestiu, ou a farda do cabo Carlos?
E se tua mãe disser que te conhece a bondade e não te imagina igual a outros polícias do fascismo, talvez respondas como Carlos, fardado de GNR:
“Sou um tropa, mãe, cumpro ordens. Pagam-me para as cumprir e é o que farei enquanto tiver este uniforme colado ao corpo.” (4, p.127)
E imagina-te no Alentejo, onde Abril abriu tempos novos: certo dia, és mobilizado para assegurar a entrega de uma reserva ao velho latifundiário. Lá chegado, vês à distância o pequeno ajuntamento; e com desdém assistes à exaltação do povo ao qual pertences, que dá vivas à Reforma Agrária e grita que unido jamais será vencido. Ouves depois a ordem de comando: «carreguem sobre eles, batam, mas sem disparos, por agora». E tu carregas, por agora sem disparos.
Continua a imaginar-te o cabo Carlos: vês o pequeno ajuntamento revoltado. E um padre se destaca então, querendo apaziguar. Ouves de novo o comando: “Quero que rebentes com os cornos daquele [“padrela vermelho”] que ali vem.” (4, p.129)
— Teu coração, naquele momento, em que arma vai pegar: no cassetete ou na espingarda?
“É a tiro, percebes?”
Leitor, e se fosses tu, farias coro com o cabo Carlos? “Sim, meu capitão.”
E pensarias como ele? “sou eu que disparo, mas quem aperta o gatilho é quem ordenou.” (4, p. 129)
E se fosses esse GNR, que olha nos olhos do padre moribundo, finalmente talvez reconhecesses, como ele reconhece agora, que aquele padre também era Carlos. Tal como Chitende, aquele padre ali moribundo era teu irmão siamês. Como, porém, não se reconheceram antes um no outro, só agora tomam consciência de que ambos se deixaram conduzir ao suicídio.
Voltemos à parte inicial desta exposição, estava Carlos sepultado, mas prestes a renascer. Prestes a ser filho, portanto, outra vez.
_Renascer, sim, mas afinal para quê?
_Para dar corpo a uma memória ou para se reconstruir diferente?
_Para seguir o guião pré-determinado ou para dar corpo a propósitos imprevistos?
A máscara, verdadeiro alter-ego de Carlos, conversa agora com ele:
“Devo dizer-te, em primeiro lugar, que tu és realmente filho da imprevidência, pois transportas informação capaz de contrariar a dos teus progenitores biológicos. És assim como um híbrido (…). O Senhor supremo reconstruiu-te, mais uma vez, selvagem como um diamante por lapidar, agreste e brutal como a paisagem que te gerou…” (4, p.161)
Carlos parece concordar, não aceitando recomeçar a vida condicionado por uma determinação prévia das “peças da sua existência”. Acima de tudo considera que tem direito a uma identidade, a ser ele próprio num tempo que seja o dele.
Mas então, questiona a máscara, porquê trazer para a nova vida um amor que é passado?
Carlos replica, dizendo que esquecer Nelma, seu grande e único amor, seria fazer da sua vida uma mentira:
“…que verdade, a ser assim, existiria naquilo que existe sem o ser de verdade?” (4, p.164)
Surge então um vento, que o leva através do espaço sideral e o deposita no passado. É aí que a máscara, isto é, o próprio Carlos, revela o seu lado mais negro. Dentro de si, descobre agora o Diabo em pessoa. E esta figura do mal ganha contornos e traços de uma grande precisão:
“A sua pose agora é nítida, daí referir o Diabo pelo nome próprio: os pés rijos de cabra montesa, negros e sujos; o lombo peludo e pardacento; o rabo pelado, comprido e sebento; as manápulas calejadas e com grossas unhas salientes; a barbicha pontiaguda, como as orelhas; a cornadura disforme no entalhe da cachola; os olhos juntos e pequenos. Nunca imaginei que todos estes adereços pudessem caber dentro da cabeça oca [de uma máscara].” (4, p.164)
É este demónio mascarado que Carlos descobre em si e que para sempre o quer prender às recordações do passado. O nosso protagonista, em desespero, ainda consegue reagir:
“Não! Não! (…) Eu tenho um encontro com o meu amor no presente, não no passado. Devia adivinhar que farias isto e agora apetece-me ficar, quedar-me morto, ainda antes de nascer.” (4, p.165)
Será que Carlos conseguirá regressar dessa descida ao inferno das suas recordações? E terá aprendido algo com isso? Algo que lhe permita renascer e ver um sentido para esse renascimento? Qualquer coisa que seja comum a todos os Carlos que, algum dia e em algum lugar, amaram as suas Nelmas?
Descer ao inferno das recordações:
A recordação daquela Nelma dos seus dez anos, por quem Carlos, o filho de um alferes revolucionário, se apaixonou em Santa Cruz de Benfica; um amor a quem o destino haveria de trocar as voltas, ao levar-lhe a bem-amada para Luanda, para essa Angola, donde Carlos regressara.
A recordação daquela Nelma dos seus dezassete anos, por quem Carlos, o filho de um sargento colonialista, se apaixonou em Luanda; um amor tão lindo que os levava a futurar em comum uma Angola mais justa e inter-racial. E a garantia desse futuro até já germinava no ventre grávido de Nelma. Porém, o destino, sempre volúvel e cheio de possíveis, arrancou Nelma da terra e levou-a pelo céu sidéreo, a fim de que se reconstituísse, a mesma Nelma e diferente, pronta para encontrar outro Carlos – também ele, diferente reconstrução do mesmo.
Será pois que, desta descida ao inferno das recordações pessoalíssimas, algo se possa aprender e trazer para o presente de um homem? Algo que pertença à Memória do Humano, a fonte e a origem de tudo quanto seja homem?
Talvez. Como Orfeu atrás de Eurídice até às cavernas infernais, também Carlos persegue Nelma através das recordações mais negras. Como Orfeu, também Carlos quer trazer a sua amada para o presente da vida. E ambos igualmente pedem ajuda à divindade, para que se concretize tal regresso: Orfeu arranca tais lamentos da sua lira que consegue comover e concitar o apoio da deusa da terra, Perséfone; já Carlos não tem igual sorte, pois lamenta- se a um Deus que “parece saturado da conversa” (14).
Ainda assim, consegue comover alguns seres celestiais que, imbuídos de humana rebeldia, aspiram a amar livremente:
“Alguns anjos comovem-se, porventura por ser esta uma ambição comum. Reivindicam livremente o direito ao amor e discutem os termos justos para o alcançar, ainda assim com boas maneiras e o devido respeito pelo Criador.
– Ajuda-nos, Senhor! – suplico, fervorosamente – Experimenta conceder-nos a liberdade de prosseguir o desejo único de um amor que pode ser reencontrado e, simultaneamente, conduz os teus filhos à felicidade. Quem sabe, podemos juntos construir o Éden prometido, o paraíso diverso de uma sidérea renovada, sem ameaças nem anjos eternizados em submissão.” (4, p.142)
Talvez com certos anjos se possa construir a terra prometida, acredita o narrador (e o Autor, através dele). Sim, talvez seja possível o paraíso, onde Carlos reencontre o amor que sempre desejou. Para que tal aconteça, Carlos terá de regressar ileso dessa descida aos infernos da memória e deles resgatar Nelma, amor de que não abdica e que quer trazer de volta para o presente dos seus sonhos.
Para isso, terá que ser capaz de fechar o armário onde guarda o tempo morto e abrir outro armário ao futuro.
Talvez então, olhando-se ao espelho, reconheça o seu rosto como a face da máscara; talvez reconheça a sua pequena história como face de tantas outras que, desde as origens, tocam e refletem a mais funda memória do ser.
Carlos sabe agora que habita a casa do ser, e que lhe dá um rosto, igual ao de todos, mas que não deixa de ser também um rosto seu. Sabe agora que voltar a viver é ter no rosto comum um rosto diferente, feito de possíveis que ainda não foram.
Então, Carlos reconhece que o espaço sideral possui novas dimensões onde se poderá morar, porque há sempre possíveis que a vida abrirá. E conclui que o seu destino é reconstruir-se num processo sem fim, refazer-se com o amor e para o amor.
Um dia destes, batem-lhe à porta e Carlos está pronto a abri-la, para que seja possível, não o fim, mas a próxima história.
Abre pois… E frente aos seus olhos, Nelma, por quem há tanto esperava. Por trás dela a rua, transbordante de um povo em festa. Canta-se abril outra vez, já passado o abril velho.
Com Nelma a seu lado, Carlos redobra na crença de que nada resiste “ao ímpeto indomável do amor” (4, p.203). E se em Lisboa um abril morto pôde voltar a florescer, será possível também que esteja prestes a despontar noutras latitudes, com outras gentes. É pois sem surpresa que regressamos à longínqua Maquela para fechar o círculo e as páginas deste livro. Aí, o povo volta a juntar-se ao redor do baobá e apossa-se do seu tronco “eterno”, para nele esculpir nova máscara, que seja o rosto de um povo em festa e afirme “o bicho homem que quer renascer” (4, p.205) das próprias cinzas.
“É pois essa a razão de nos criarmos, lutando: o amor!” (4, p.78).
E se ele ainda não é, a esperança e a fé inquebrantáveis de que há-de ser, um dia – porque a vida tem em si essa voz, a qual nem a morte consegue calar.
Santo Agostinho escreveu nas Confissões:
“as coisas que não estão no próprio lugar agitam-se mas quando o encontram, ordenam-se e repousam. O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele que me leva.” (1, p.363).
Figueira da Foz, 12 de Novembro de 2016
Obras citadas:
- AGOSTINHO, Santo – Confissões. 9ª edição. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1977.
- ASSIS, Machado de – Memórias Póstumas de Brás Cubas. 2ª edição. Lisboa: Ulmeiro.
- ELIADE, Mircea – Aspectos do Mito. Lisboa: Edições 70, s/ data (Ed. original: 1963).
- RIBEIRO, José Luís – A Máscara de Sídero. Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2016.
Nota: As citações respeitam a ortografia seguida nas obras respetiva.
Manuel Coelho
Aplausos!
De parabéns a Figueira da Foz, maravilhosa cidade, linda e bonita, que tem escritores, apresenta livros, e desperta paixões! Depois das canções, começa também a ser reconhecida pela cidade de pessoas que escrevem e editam, ontem, Afonso Cruz, António Tavares, Nuno Camarneiro, Gonçalo Cadilhe, (…), hoje, José Luís Ribeiro, e amanhã, quem será?
Aos beijos e abraços, PC_oBispo, v/devoto incensador de mil deidades.
Um Comentário
josé Luís Ribeiro
Amigo Paulo Craveiro,
agradeço a divulgação (vale muito o texto do Manuel Coelho) e as palavras amigas.
Um abraço.