Contentores dos Retornados
Os contentores dos chamados retornados de África, empilhados nos portos de Lisboa e de Leixões, principalmente em 1975 e 1976, eram uma mancha na paisagem e nas vidas dessas pessoas deslocadas, foram, são e serão um peso na consciência de alguns homens, e manter-se-ão como reflexão para toda uma Nação.
Na totalidade das colónias/províncias ultramarinas portuguesas de África, o número de deslocados, rumo a Portugal e não só, foi bem superior a meio milhão (entre meio e um milhão, não sei o número exacto).
Retornados, expressão que não se limitava somente aos que regressavam ao ponto de partida, mas mais latamente aos que que agora partiam da sua terra de nascimento e de criação (em África) e aos que, não tendo nesta última nascidos, a tinham feito como sua.
Esses contentores, com os pertences dessas pessoas desalojadas, principalmente de Angola e de Moçambique, eram bem mais que uma mancha na paisagem (por desfigurarem e contrariarem o aspecto normal daqueles recintos portuários). Essa mancha simbolizava e alertava para o drama humano que se abatera sobre os milhares de famílias de todas as “cores” e classes sociais, na sequência da descolonização e independência dessas colónias.
Peso na consciência de alguns dos militares que executaram o golpe de 25 Abril 1974 em Portugal e do MFA (Movimento das Forças Armadas), de um partido político da área do socialismo totalitário, e de alguns políticos de um partido da área do socialismo democrático.
Inquestionáveis, a descolonização e as independências, face às situações vigentes nessas colónias e o contexto da História. Mas condenável, o modo como as mesmas se processaram, dadas as consequências desastrosas que advieram, nomeadamente com perdas de vidas humanas, dramas, sofrimento, etc., etc., tanto de portugueses como dos povos africanos.
No caso da então Lourenço Marques, o envio dos contentores para Portugal não foi tarefa fácil para muitos, não sei se mesmo para a maioria. Além do cumprimento das obrigações burocráticas para obtenção de autorização para o envio dos pertences, acrescia o conseguir-se lugar para os contentores em algum navio e consequente formalidades para despacho dos contentores. Dado que os navios não chegavam para a quantidade de contentores, verificavam-se filas à porta das Companhias de Navegação, dias seguidos, 24h sobre 24h, com as famílias a revezarem-se por turnos. Normalmente, despachavam-se os contentores e depois seguiam as pessoas.
E o drama (um de vários) não terminava com o despacho dos contentores. Seguia-se o da obtenção das passagens aéreas para a saída da terra prometida a caminho da de refúgio. O drama personificava-se na ansiedade dos dias a passarem-se, no ruído dos boatos que proliferavam, na pressão sentida da desilusão agora vivida, etc..
Chegadas a Portugal, muitas famílias, por não terem onde ficar, recorriam ao IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais) para obterem alojamento (em pensões e em hotéis, espalhados pelo País). Ouras famílias houve que estiveram alojadas no Vale do Jamor, em Oeiras (sem condições de habitabilidade, à lama e ao frio). Outras ainda, em casa de familiares (em alguns casos, acompanhado de desentendimentos que posteriormente advieram).
Alojamentos de recurso e provisórios até à primeira oportunidade para refazerem a vida. E essa oportunidade materializava-se em muitos casos em biscates, em empregos provisórios, uns, em empregos inferiores às habilitações literárias e às qualificações profissionais, outras. Mas muitas outras pessoas, com mais ou menos dificuldades, conseguiram refazer a vida em boas condições, fruto do seu valor, persistência e empreendedorismo. Era o tempo em que o emprego escasseava e a economia definhava (a prioridade em Portugal naquele tempo era a revolução, com as greves por tudo e por nada, as nacionalizações, a reforma agrária, etc., etc.).
Paulatinamente, pelo seu nível médio de escolaridade elevado, pelas suas competências profissionais, pelo seu dinamismo e espírito de iniciativa, os desalojados das ex-colónias refizeram as suas vidas a partir do zero, integraram-se na sociedade, e vieram a dar um grande contributo ao desenvolvimento de Portugal, em vários domínios. E, acrescido à sua maneira de ser, de pensar e de espírito aberto, características caldeadas pela maneira própria de viver, trabalhar e relacionar na África de onde vinham, foram passando de alguma animosidade, desconfiança e inveja por parte de alguns residentes em Portugal, para a aceitação, admiração e cordialidade.
Pese embora o descrédito a creditar a alguns (militares e políticos) e o sofrimento causado a muitos (as vítimas), com este capital humano valioso Portugal ficou a ganhar e Moçambique a perder. De nada vale torcer as orelhas ou lamentar os males efectuados, pois há males que são irreversíveis. E estes foram, são e sê-lo-ão para sempre.
Assim fica resumida uma parte da história dos contentores dos retornados e de parte do drama por estes vivida. Que a Nação reflicta sobre o muito (já conhecido e por conhecer) que eles representam, e que as suas conclusões sejam uma parte com que amanhã a História possa ser escrita, com verdade e isenção.
Pierre Vilbró – Fevereiro de 2021
5 Comentários
Manuel Martins Terra
Depois da Revolução de Abril, os militares no governo esqueceram-se dos portugueses ultramarinos, gente de todas as cores e credos religiosos, abandonando-os à sua sorte, o que implicou na maior ponta aérea no século XX, isto para não falarmos dos muitos que tiveram que fugir em traineiras e navios de carga. Houve os conseguiram a fuga, em camiões que transportavam na carroçaria, dezenas de famílias, fugindo para o Sudoeste Africano e chegando à África do Sul. Grande parte naturais de Angola e Moçambique e outros que tiveram que retornar ao país que já pareciam ter esquecido. À chegada a Portugal, levaram todos com o carimbo de RETORNADOS, e se alguns ainda conseguiram reunir alguns pertences dentro de um contentor de madeira (alguns depois roubados nos cais de Lisboa e Leixões) outros trouxeram apenas a roupa do corpo. Esses portugueses, passaram aqui por momentos dramáticos à procura de habitação e emprego, nem sempre apoiados por familiares e amigos que se pensavam ser. Só que a vontade férrea de muitos, conseguiu romper as adversidades, e felizmente imporem-se na sociedade como empresários de sucesso, na construção civil, hotelaria, turismo, transportes e nas mais variáveis áreas. Foram hábeis a desenrascarem-se e a procurarem outros rumos que lhes permitisse refazer o seu dia a dia e da família. Como diz o Pierre Vilbró, há males irreversíveis e esses são e sê-lo-ão para sempre. Gente que viu os seus bens nacionalizados, gente que trabalhou uma vida e que tudo perdeu sem explicação, e com os sucessivos governos de transição a assobiarem para o ar no Terreiro do Paço. Por isso ainda hoje, clamamos por justiça, porque esse é um direito que ninguém nos pode espoliar.
Mafurra
E quem podia ter EVITADO tudo isto preferiu mandar para a morte cerca de 9000 portugueses, a maioria deles que nunca lá tinham posto os pés !
Depois da Independência do Gana ( primeiro país da África subsariana a consegui-lo ) em 1957 sob o Lema “É melhor ser independente para
governar sozinho, bem ou mal, do que ser governados pelos outros”.
Só não compreendeu a mensagem do Lema quem não quis !
Tempo não faltou !
E quatro anos depois tinha-mos a guerra a bater-nos à porta.
Se não fosse a teimosia e ambição do DITADOR tinha-mos evitado cerca de 9.000 mortos, fora os estropiados física e psicologicamente.
E ainda há quem tente LAVAR as mãos dizendo que a culpa foi de A ou B ou C !
Não há duvida, “não há pior cego que aquele que não quer ver”.
ABM
Muito bem. Umas achegas para complementar o ramalhete:
1, Em Outubro de 1974 o governo de Transição, já da Frelimo, passou uma lei em que os bens pessoais dos que saiam de Moçambique, por terem sido obtidos via um esquema de “exploração” ficavam sujeitos a avaliação e ao pagamento de uma taxa de 25%. Os que sairam antes não pagaram nada.
2. Muitas coisas simplesmente não podiam ser “exportadas” e eram confiscadas;
3. Muitos contentores simplesmente não seguiram. Ficaram nos portos e posteriormente foram roubados;
4. À chegada a Portugal, muita gente não tinha dinheiro para levantar os contentores, que ficaram ao sol e à chuva;
5. Muitos tiveram que vender o que tinham por tuta e meia, para poderem sobreviver;
6. Muita gente não tinha onde pôr a tralha que trouxe, não tinham nem conseguiam casa. No caso dos meus pais, a tralha foi parar a casa dois meus avós paternos, que não acharam piada nenhuma à imposição – apesar de terem literalmente um armazém no quintal;
6. Olhando para trás, o que veio era quase tudo pura tralha. Mas era o recheio da casa dos meus pais;
7. Ainda tenho algumas das coisas que vieram no contentor dos meus pais. São tesouros pessoais e familiares, que hoje contam um percurso e uma história.
ABM
Zé Carlos
Parafraseando irónicamente W. Churchill; ‘Never so FEW owed so much to so MANY’.
Oficialmente a nivél nacional, quando se fala de retornados, referem-se aos que foram diretamente para Portugal, cerca de 600 e tal mil.
Na realidade, no total o número de pessoas que sairam de Angola, Moçambique e Guiné, chega perto do milhão e meio.
Mais de 750mil, encaminharam-se para a Namibia, Rhodésia/Zimbabwe e A. do Sul, depois há dezenas de milhar que foram para o Brazil, Norte América, vários países da Europa, Hong Kong, Macau e Oceânia.
O que é certo é sucessivos governos de Portugual nos últimos 45anos fazerem o melhor possivél para varrer p’ra baixo do tapete, os factos relacionados a esta evitável vergonha.
Quase meio século depois, as verdadeiras relercussões e o final desta triste história ainda está por escrever.
Candido F. Neves
Foi uma verdadeira tragédiaDeitei-me com a minha vida organizada e acordei com ela destruída como um furacão. Tinha 39 anos quando regressei a Portugal.