Medina Carreira e o antigo ensino técnico
- Meu artigo de opinião saído no “Público” (15/05/2014), p.p., 54-55.
Existe uma erótica do novo, o antigo é sempre suspeito”
(Roland Barthes).
No programa da TVI24 “Olhos nos Olhos”,
desta semana, foi tema de debate o ensino superior, com a participação bem documentada e explanada do catedrático de Coimbra, Carlos Fiolhais.
A páginas tantas , foi abordado, um tanto “a latere”, o ensino profissional de antes de 25 de Abril, merecedor da atenção de Medina Carreira, licenciado em Direito, mas com vivência escolar deste tipo de ensino por ser, também, diplomado com o curso industrial do antigo ensino técnico. Desta forma, com conhecimento de causa, lamentou-se ele, perante os telespectadores, do facto da discussão na praça pública desta forma de ensino ser tida pelo poder político como uma espécie de águas passadas que não movem moinhos não merecedora, portanto, de ser avaliada nos prejuízos que a sua extinção acarretou.
Extinção essa que mereceu esta contundente crítica de Guilherme Valente: “O maior crime perpetrado na educação foi a extinção do ensino técnico-profissional. Decidida na primeira assembleia constituinte, por unanimidade, com a concordância cobarde de muita gente que seguramente tinha consciência do erro. Na altura só uma voz se ergueu para criticar a decisão, afirmando que iria gerar mais desigualdade: o Professor A. Sedas Nunes. E assim aconteceu”.
Ora este statu quo ficou a dever-se a uma coisa bem simples, que repousa menos no direito constitucional à educação e mais no novo-riquismo da democracia portuguesa reconhecido pelo ex-ministro da Educação David Justino ao lamentar o facto de, após o 25 de Abril, “se ter morto o ensino técnico e profissional, tendo-se perdido, com isso, quase 30 anos” (Diário de Coimbra, 10/12/2003).
Por acreditar num ensino técnico devidamente dignificado me fiz seu defensor, por várias vezes, com posts publicados no blogue De Rerum Natura e nos media: ”O ensino profissional na ordem do dia”, Público (05/Set./2012) e “A extinção dos liceus e escolas técnicas”, Diário de Coimbra, (26/Set./2001). Mas ouçamos, sobre esta temática, a voz de Howard Gardner,
psicólogo da Universidade de Harvard e festejado autor da “Teoria das Inteligências Múltiplas”:
Chegou a hora de alargar a nossa noção do espectro dos talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente. É um objectivo que perdemos completamente de vista. Em vez disso, submetemos toda a gente a uma educação em que, se somos bem sucedidos, a pessoa fica preparada para ser professor universitário. E, ao longo do percurso, avaliamos toda a gente de acordo com esse estreito padrão de sucesso. Devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a ajudá-las a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultivá-los. Há centenas de maneiras de ser bem sucedido e muitas, capacidades que nos ajudarão a lá chegar”.
E, se é verdade que o direito à educação está estabelecido pela Constituição Portuguesa, igual direito se perfila no que respeita à cultura física e à prática desportiva. Mas daí a defender-se que o acesso à universidade deve ser para todos, independentemente das suas capacidades intelectuais ou de trabalho, apresenta o mesmo vício de forma que considerar que aos praticantes de futebol de menor aptidão físico-motora deve ser facultada a integração nas equipas profissionais dos maiores clubes da 1.ª Liga de Futebol. Em mera hipótese, suponhamos que Eusébio, Figo ou Cristiano Ronaldo tinham sido obrigados a desistir das suas competências,
para utilizar a classificação de Gardner, “corporal-cinestésicas” em favor de exigências “lógico-matemáticas ou linguísticas”. Hipoteticamente, não seriam eles hoje indivíduos a aumentar o rol imenso de portugueses em buca de emprego no estrangeiro vítimas de insucesso escolar pela não conclusão do antigo ensino superior ou mesmo liceal?
Sabendo-se que as aprendizagens de determinadas profissões tem um determinado período da vida do aluno para uma melhor e mais rápida aquisição, não posso deixar de considerar que colocar indivíduos no actual ensino técnico-profissional depois de terem falhado anos consecutivos num ensino direccionado unicamente para o ingresso em escolas de ensino superior desacredita aquele ensino tornando-o numa escolha de último recurso. Urge, portanto, mudar a mentalidade de uma sociedade arreigada a padrões obsoletos de sucesso de um diploma de ensino universitário ou politécnico impingido a qualquer custo e sem condições de êxito, regressando a um ensino que, a partir do 6.º ano de escolaridade, seja capaz de indicar ao aluno o caminho a seguir, segundo as suas capacidades avaliadas em testes de aptidão vocacional. E, consequentemente, não misturando numa mesma escola secundária alunos de “ papel e caneta” com alunos que necessitam de oficinas devidamente apetrechadas e professores com formação altamente especializada.
Arrogo em minha defesa o facto de não escrever de “pena ao vento” , como diria Eça, por ter iniciado, em fins de 50, a minha carreira docente de 18 anos na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, da então Lourenço Marques, e ter-me deparado com uma pontinha de orgulho, décadas volvidas, com um site da autoria de seus antigos alunos que homenageiam o respectivo corpo docente pela formação académica recebida e pelo seu não menos importante desenvolvimento como pessoas, em cumprimento do princípio defendido por Albert Einstein: “É fundamental que o estudante adquira uma percepção nítida dos valores”. Lê-se aí:
“Naturalmente que, como em tudo, no respeitável corpo docente que ao longo dos anos leccionou na nossa escola, nem todos conseguiram ser populares, mas todos contribuíram, de uma forma ou de outra, para a nossa formação, quer como estudantes, quer como pessoas. Alguns deixaram a sua marca. (…) Ainda hoje, e eu faço notar isso aos meus filhos, eu sei o nome dos meus professores, e faço questão de realçar a sua competência. Pena que nem todos eles possam já tomar conhecimento de que também fazem parte da nossa saudade académica”.
É este ensino técnico,
com espirit de corps, sem complexos de inferioridade de ser” filho de um Deus menor”, viveiro de profissionais briosos e de homens reconhecidos pelo ensino que receberam e os preparou para o mundo do trabalho, que deve merecer o respeito dos cidadãos e o remorso de políticos que, em nome de uma sociedade sem classes, a transformaram numa sociedade desclassificada académica e profissionalmente.
Só desta forma sairá reforçada uma educação que não tenha como finalidade um descarado facilitismo, ainda que para fins meramente estatísticos, na obtenção de diplomas de ensino superior à Relvas que envergonham as instituições privadas que os outorgaram e desvirtuam os políticos seus possuidores em cargos ministeriais ou “sentados de cócoras nas bancadas de São Bento”, para fazer uso da mordaz crítica social e política de Eça de Queiroz.
3 Comentários
Rui Baptista
Caro Paulo: Do teu comentário relevo a tua experiência de vida num pobre país que tem cabeças (poucas) para pensar e mãos para executar sem pensar (muitas).
É uma sociedade que se assemelha a um corpo com cérebro, sem espinal medula, como membros atáxicos a executar funções mecanicamente, bem descritas no filme “Tempos Modernos”, de Charlie Chaplin (Charlot), em que os operários passam o dia a executar a sua função de simples robots.
Ora, a espinal medula, de que falo, eram os alunos das antigas escolas técnicas que vinham preparados com noções teóricas para a sua vida profissional em contraste com uma sociedade em que é valorizado o trabalho mecanicista e o capital intelectual é subalternizado. Aliás, como bem descreves no teu post.
Daí, o estarmos a preparar uma juventude escolar de “papel e caneta” que não seguindo estudos superiores (o funcionalismo público foi chão que já deu uvas…) se vê a braços, terminados estudos secundários, com a sua inaptidão para pregar um simples prego ou aparafusar um simples parafuso! Resta-lhe, a aspiração de se sentar em S. Bento, depois de um tirocínio como boys de um qualquer partido político. Disso mesmo nos dá conta a pena mordaz de Eça: “A política é a ocupação dos ociosos, a ciência dos ignorantes e a riqueza dos pobres. Reside em S. Bento”!
Um abraço amigo com o orgulho de ter pertencido ao corpo docente de uma escola industrial (EIMA) em que uns tantos seguiram estudos nos antigos institutos industriais ou se licenciaram em escolas universitárias de Engenharia.
Mais: de diplomados que estão bem na vida porque trabalham e estão preparados para trabalhar de fato-macaco ou em gabinetes de estudo. Criaram um “esprit de corps” a que não foi estranho a prática desportiva em pugnas não contra os alunos do então liceu Salazar ou liceu António Enes, mas com esses alunos. Na nossa Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques houve sempre a preocupação de o desporto ser uma escola de virtudes, jargão caído em desuso nos dias de hoje em que o desporto profissional, por vezes, assume o papel do antigo circo romano e o próprio desporto amador não conheceu, em sua plenitude, o apogeu de um cultura integral helénica: “mens sana in corpore sano”!
Nelson Barata
Não podia estar mais de acordo, ainda por cima sendo aluno do liceu posso dizer-vos que embora tenha conhecimentos rudimentares de algumas artes e ofícios porque aprendi com o meu pai, na altura não havia “lap tops” facto que nos deu algum traquejo para a vida.
Entendo, hoje mais do que nunca, senão tivessem dado cabo do Ensino Técnico quer Industrial quer Comercial, teríamos um Povo mais competente e mais ductil a nível de trabalho e, mesmo que não houvesse emprego aqui e tivessem que emigrar, teriam muito mais capacidades para poderem singrar na vida, ainda há necessidade de artífices de corpo inteiro, electricistas, canalizadores, torneiros, soldadores, profissões ditas menores, que pela sua competência podiam vir a usufruir de uma vida economicamente vantajosa.
Infelizmente, o nosso voto só serviu para alimentar uma corja de políticos hábeis, que com os seus excessos, provocaram a crise em que nos envolveram.
Saudações.
Nelson Barata
Rui Baptista
Prezado Nelson Barata: Grato pelo seu comentário que, para além do seu valor generalizado, tem para mim o grande valor de não ser um juízo em causa própria. Infelizmente, vivemos num país em que o hábito faz o monge, mesmo que esse hábito tenha a vergonha de licenciaturas à Relvas
Num mundo preso nos liames estatísticos seria interessante saber quantos boys que estão na política têm idênticas licenciaturas de três ao pataco. Mas, mesmo assim, residiria a dúvida da sua validade e honestidade, Sobre certas estatísticas manipuladas, ocorre-me à memória o autor do livro “Como mentir com a estatística”, Darrell Huff, ao escrever: “O que é a verdade – perguntou Pôncios Pilatos. Não é a estatística… disse uma voz na multidão”.
Independentemente de tudo isto, uma coisa é irrefutável: os princípios éticos destes alunos do ensino técnico que escreveram a comovente mensagem de agradecimento ao seu corpo docente. Prova irrefutável de um ensino que além de instrução sobre inculcar nos seus alunos princípios educativos sólidos. E isto é tanto mais de louvar porquanto vivemos uma época em que os alunos chegam a agredir fisicamente e verbalmente os seus professores com o beneplácito dos próprios pais. Saudações amistosas