Memórias da partida da terra onde nasci e cresci!
Por Malu
6 de Janeiro de 1976.
Fez 40 anos que deixei a terra onde nasci e cresci! TANTO TEMPO! Gostaria de partilhar a minha saída de Moçambique (tenho aqui no BigSlam muitos amigos de Moçambique) e o meu baptismo de passar seguranças no aeroporto.
É fim de tarde. Os meus pais deixam-me no aeroporto de Lourenço Marques, hoje Maputo. Estamos tristes, não há grandes despedidas, há muitas recomendações. Vou apanhar o avião da TAP para Lisboa. Estou sozinha – foi muito difícil conseguir este bilhete, mas temos conhecimentos, por isso, sou a primeira a partir, sem regresso. Há uma fila nas partidas. Estão a abrir as malas. A camarada polícia/militar ordena-me que abra a mala e, logo à vista, tenho um pequeno pacote amarelo de chá “Li-Cungo” que levo para a minha Avó.
Mexem e remexem na minha roupa e vem aquela voz “camarada não pode levar chá: é sabotagem económica” tira o pacote de chá e leva-me para um cubículo onde a camarada polícia/militar me manda despir. Questiono. A camarada responde “são ordem camarada, para ver se traz sabotagem económica”. Bem, não é conveniente discutir de quem é a ordem e por isso cumpro de imediato, ficando de pé, de soutien e cuequinhas a olhar para a camarada e a camarada a olhar para mim. A camarada espreita para dentro do soutien e cuequinhas. Não encontra a dita sabotagem económica… vá-lá, safei-me! Lembro que nesta altura não se falava de “bolotas de coca”, portanto safei-me de um teste à próstata. A camarada manda-me vestir. M__da, o zip das calças (jeans super boca de sino) encravou, não fecha.
Entro no avião, um Boeing Jumbo 747, de braguilha aberta (a camisa é justa, curta, não tapa o fecho).
Sento-me e… começo a chorar. Senta-se, ao meu lado, uma miúda com uns 10 aninhos, com a avó. Vou a chorar até Kano/Nigéria, cerca de 6 horas de viagem, onde o avião faz uma paragem. A miúda tenta divertir-me, fala muito, repete “hás-de voltar, hás-de voltar, eu hei-de voltar quando for grande”. Tenho pena de não me lembrar do nome dela. Voltei…passados 25 anos! Mas…passados 40 anos, tenho uma confissão a fazer e que me perdoem as autoridades Moçambicanas. A minha mãe tinha-me dado uns 50 dólares em notas, para trazer, aquelas coisas de mãe, “vais precisar, vai-te fazer falta, tens de levar”.
Era super proibido sair com dólares de Moçambique – sabotagem económica – e, assim, escondemos as notas enroladinhas dentro dos rolinhos das minhas peúgas, o meu pai nem sonhava. Portanto, imaginem quando a camarada polícia/militar abriu a mala e tirou de lá, apenas, o chá Li-Cungo! Uffff….Desde então bebo muito chá…acalma-me.
8 Comentários
Clara van Zeller
Sónia,
É tudo verdade o que afirmas. Pede ao Samuel, se assim o entenderes, o meu contacto.
Bj
Carlos Saraiva
A TODOS QUE AQUI TRANSMITIRAM OS SEUS SENTIMENTOS E SAUDADES DA NOSSA QUERIDA “LOURENÇO MARQUES” OS MEUS AGRADECIMENTOS POR ME FAZEREM RECORDAR TANTOS E BONS MOMENTOS ALI PASSADOS E PARA CONFIRMAREM ESSA SAUDADE SÓ VOS POSSO DIZER QUE DARIA 5 ANOS DA MINHA VIDA POR 5 MESES PASSADOS NAQUELES ANOS DE 1972.
A todos um abração e um kanimambo
Malu Moutinho
Caros laurentinos(as), tombazanas, coca-colas, euroafricanos, africanos…
Agradeço os vossos comentários e sei que, infelizmente, todos nós temos histórias que nos entristecem sobre a nossa partida e de outras “partidas”, que também as tive. Apenas quis partilhar uma memória, numa data que me deixa sempre nostálgica, pois continuo a ser uma africana pelo coração. E, já agora, deixo-vos aqui este poema do nosso querido Rui Knopfli, (O país dos outros, 1959). Kanimambo e um excelente 2016! Bjnh Malu
NATURALIDADE
Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável… Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.
Ana Canas
Olá Malu,
Só nos conhecemos em Portugal. Estudámos juntas no ISLA, lembras-te?
Adorei o teu texto e, acima de tudo, o poema. Mas o coração sangrou.
Abraços
Malu
Olá Ana,
Lembro-me bem de ti, do ISLA bem como dos teu pais da Damaia. Ainda há uns tempos houve uma troca de mensagens, já não me lembro como, e soube que estavas em Luxemburgo. Um grande beijinho e Felicidades
Malu
Samuel Carvalho
Olá Malu Moutinho, adorei este poema do Rui Knopfli, (O país dos outros, 1959).
Vou partilhar no BigSlam de forma a ter maior visibilidade.
Kanimambo!
Aquele abraço, Samuel
Clara van Zeller
Malu,
O teu texto convocas-nos a rememorar as nossas próprias recordações. Às vezes embarcamos no barco das recordações e viajamos para dentro das nossas lembranças… Remexem-se sentimentos, momentos, vidas ali guardadas. Relembram-se sonhos que a vida nos levou a pôr de lado, a adiar, alguns mesmo a esquecer.
Caminhos da vida….Como seria bom controlarmos a nossa vida! Mas infelizmente não é assim… e o destino (se é que existe!) nem sempre cumpre o programa que nós próprios delineamos.
Obrigada, Malu
Beijinhos
Clara
Sónia Costs-Neves
Clara.
Julgo que nos conhecemos. Nossas mães eram colegas (professoras) e amigas. Deram aulas juntas e eu andei com a sua irmã nessa mesma escola. Maria Helena, certo? 7 irmãos, certo? Procure-me no facebook. Gostaria de saber de vós. Abraço