O FIO DA MEMÓRIA
Não tenho por hábito trazer para este espaço os meus problemas. Mas desta vez, e porque a história é, quanto a mim, bizarra e sem pés nem cabeça, decidi partilhar convosco o que me aconteceu em 2011, numa altura em que exercia a função de Correspondente da Rádio Moçambique na África do Sul. O telefone toca e eu atendo. Uma colega minha, que lamentavelmente funcionou única e exclusivamente como caixa de correio, pergunta-me se eu lhe podia esclarecer sobre os inconvenientes que podiam resultar pela transferência do horário do programa “O Fio da Memória”.
Respondi dizendo que na mudança de horário de qualquer programa devemos sempre observar duas questões fundamentais. É imperioso que se pergunte ao ouvinte a sua opinião. Há várias formas de fazer isso. O ouvinte foi e continua a ser a razão da nossa existência. É ele que paga a Taxa de Radiodifusão. Em segundo lugar, tratando-se dum programa comercial, é importante contactar o patrocinador e esclarecer-lhe dos motivos da mudança. Pode ser que o patrocinador diga sim, mas também pode acontecer que ele diga não. Se disser não e consequentemente desistir de patrocinar, o programa fica sem publicidade. Ficando sem publicidade não há quem pague o tempo de antena. Traz prejuízos para a instituição.
Quando perguntei sobre as razões da mudança no horário de transmissão, foi-me dito que o Conselho de Administração assim tinha decidido porque o programa “não tem um conteúdo eminentemente moçambicano”. Mais do que isso: todos os programas sem conteúdo moçambicano só podiam ser transmitidos depois das 22.00 horas.
Considerei a explicação absurda. Não reagi a tamanho disparate. Não comentei, porque a fazê-lo estaria a dar “pérolas a porcos”. No dia 4 de Abril de 2011 o programa que durante 22 anos era transmitido todos os domingos às 09.05 horas, passou a ser emitido às 20.00 horas. Engoli um sapo com todos os inconvenientes que isso normalmente causa.
Ao tomar essa decisão a anterior Administração da Rádio Moçambique sem se aperceber disso, confrontou-se com um outro problema. O período das 20.00 às 21.15 horas, (tal como o das 13 às 14.00 horas) foi, desde 1975, reservado a transmissões em “cadeia nacional”. Porquê então a decisão de colocar um programa comercial num espaço eminentemente informativo?
Quando por qualquer motivo era preciso transmitir às 20.00 horas de domingo, algo de importância política, como por exemplo um discurso do Sr. Presidente da República, os gestores da Rádio Moçambique tomavam a decisão de alterar a transmissão do programa “fio da memória” para as 09.05 horas de domingo. Este tipo de alteração aconteceu mais do que uma vez. Ora se o programa não podia ser transmitido aos domingos às 09.05 horas, porque não tinha conteúdo eminentemente moçambicano, porque é que, quando convinha à RM, a sua transmissão era transferida para aquela hora? Há ou não há aqui um contra-censo.
A justificação dada para a transferência do horário do programa (das 09.05 para as 20.00 horas) foi, no meu entender, uma desculpa esfarrapada e sem nexo. Quem tomou essa absurda decisão muito provavelmente nunca ouviu o programa, (em Outubro de 2014 o programa completa 25 anos de existência) porque se tivesse ouvido constatava que a componente moçambicana sempre existiu. Semanalmente nele se recordam factos e canções de Moçambique e de outros quadrantes do Globo. A menos que, abordar temas relacionados com nomes emblemáticos da nossa cultura como são os casos de Justino Chemane, Rui de Noronha, Rui Nogar, José Craveirinha, Ricardo Rangel, Alexandre Langa, Fany Fumo, Artur Garrido, Sox, José Guimarães, Zeca Alage, João Luis Albasini, Gungunhana, Malangatana, Kok Nam, Sebastião Alba, João Maria Tudela, Eusébio e por aí fora, não significa incluir no programa a tal componente moçambicana que alguns decisores da anterior Administração da RM teimaram em dizer que não existe?
Os emails e os telefonemas que recebi, quer de ouvintes, quer de alguns responsáveis da empresa patrocinadora (TDM), manifestando o seu desagrado pela decisão tomada, são prova evidente de que muitas vezes se decide sobre o joelho, sem tomar em linha de conta o efeito negativo que uma determinada decisão pode provocar.
Depois de quase 3 anos de espera, decidi escrever à actual Administração da RM expondo a situação. Felizmente encontrei no seu Presidente, a sensibilidade necessária, para reverter uma situação absurda, fruto duma decisão sem pés nem cabeça. Resultado: o “fio da memória” passou a ser transmitido desde o passado dia 3 de Agosto do corrente ano, às 09.05 horas, de onde aliás nunca devia ter saído. Infelizmente houve muito boa gente, com poder de decisão, que pretendeu ser “mais revolucionário que a própria revolução”. A esses, hoje, saiu-lhes o tiro pela culatra.
João de Sousa – 30.07.2014