O SENTIDO DAS PALAVRAS ou O NOSSO AUTO-ESTUDO
António é amigo de longa data. Dos tempos da nossa juventude no bairro da Malhangalene. Da Malhangalene que foi Sede do Atlético Clube de Lourenço Marques na década de 60, ao tempo dos Morgados, do Alberto Costa, do Valentim Gomes da Silva, dos Wilsons e de tantos outros. A Malhangalene de ontem era a padaria, o talho, a mercearia, a casa de modas, a pastelaria, a drogaria, o sapateiro, enfim, era tudo isso na mesma rua. A Rua do Porto.
Era o Cordeiro, de seu nome completo Celestino Gomes Cordeiro, que “vendia o melhor vinho directamente importado em barris da Metrópole”. Era a cantina do “fikizol” (ainda não consegui descobrir o significado desta palavra) e onde, se a memória não me trai, se situa hoje o Restaurante Micael, no prolongamento da Avenida Heróis de Marracuene. Por essas bandas ainda o Asilo de Santo António, (hoje Centro de Saúde) que servia religiosamente às famílias mais carentes do bairro “a sopa dos pobres”.
A Malhangalene dos largos, ruas e praças que ostentavam os nomes de regiões e cidades portuguesas ou de personalidades do tempo colonial. Era o Largo do Minho, o Largo D. Gonçalo da Silveira, ou o Largo do Alentejo. Era a rua de Castelo Branco, a rua de Silves, a rua de Coimbra, a rua de Vizeu e por aí fora.
E como se tudo isto já não fosse suficiente, para fazer da Malhangalene um lugar laurentino “sui generis”, em começos de 1971, foi inaugurado o Bairro Popular da Fundação Salazar, que ainda hoje existe, constituído por 10 prédios de 3 andares cada um, destinados a pessoas da classe média emergente: enfermeiros, professores, funcionários dos CFM, da Administração Civil e Judicial. Estes prédios faziam “vizinhança” com a então Escola Primária Padre Martins. Quando houvesse tourada conseguíamos ouvir o “olé” gritado da falecida Praça de Toiros, ali na então chamada zona das “Lagoas”.
Depois havia outra coisa sem igual naquele bairro: o Grupo Desportivo da Malhangalene,
por onde passaram a sua classe nomes como os de Fernando Adrião (hóquei em patins) ou Paulo de Carvalho (basquetebol), para falar apenas destes.
Essa foi a Malhangalene que eu, o António e tantos outros do nosso tempo partilhámos. E dali partíamos no velhinho machimbombo 24 (se a memória não me atraiçoa) para o Liceu Salazar ou então, eu, anos mais tarde, às 6 horas em ponto (no 6 ou no 16) para o RCM para mais uma emissão do programa “bondiazinho”.
O António, com quem me correspondo com alguma regularidade mandou-me uma carta. Por email, claro, porque carta daquelas de colar o selo e colocar no marco do correio, infelizmente é coisa “jurássica” que passou para a história. Acredito que ainda na nossa geração será objecto de pesquisa arqueológica. E nessa carta (transcrevo parte dela) ele viaja, embora que duma forma leve, pelo mundo do futebol, numa altura em que a maior parte de nós vive as emoções, o espectáculo e os escândalos deste Brasil 2014.Numa das passagens da sua “missiva electrónica” ele diz assim:
“Uma vez refeito da injusta derrota, também pelo árbitro imposta aos bárbaros da Croácia, que venderam bem cara a sua queda ao Brasil, que fez uma cerimónia de abertura muito parda, porque muito “europeizada”, deixando de utilizar o seu vasto repertório cultural crioulo e da sua inigualável mestiçagem plural, aproveito a oportunidade para te pedir para ensinares os homens da nossa “mídia” ligados ao desporto que FIFA quer dizer Federation Internationalle du Football Association (convencionou-se usar esta fórmula francesa) e nunca “Federação Internacional de Futebol Amador”, como um companheiro teu da Rádio Moçambique tem dito, numa clara manifestação de preguiça e pouca investigação.”
Neste exemplo que o meu amigo António coloca na missiva que fez o favor de me enviar, fica explícito que hoje, infelizmente, alguns dos nossos jornalistas não pesquisam. A referência ao “football association” deriva do facto de terem existido na época da fundação da FIFA duas vertentes do futebol. Uma controlada pelo Football Association e outra controlada pelo Rugby Football Association, actualmente conhecida somente por rugby.
Infelizmente o provérbio “o saber não ocupa lugar” que pretende traduzir e tornar claro toda a vantagem de estarmos disponíveis para aprender, descobrir e conhecer, não faz parte da bagagem de alguns dos nossos jornalistas.
Estes nunca perceberam que, para além da nobre missão de informar, são os grandes disseminadores do conhecimento de mais fácil acesso, porquanto alcançável por todas aquelas pessoas que têm pouco tempo ou posses materiais de irem à escola, frequentarem uma biblioteca, ler livros das mais variadas temáticas ou “viajar” pela internet. Então sobram-lhe os meios de comunicação social para se informar ou formar-se. O jornalista funciona (devia funcionar) como o fio de prumo por forma a evitar que a parede intelectual popular nasça torta.
João de Sousa – 18.06.2014
Um Comentário
Braga Borges
As coisas que o meu amigo João sabe! Enriquecedor. E dizer-vos que, tendo eu nascido em 1942 no H.C.M.Bombarda, fui de seguida para a minha primeira casa, que ficava próximo da parte final da Rua do Porto, na zona onde depois construíram a praça de toiros, que se situava mais à esquerda. Lembro-me muito bem, do meu primeiro amigo, dos tempos de chucha, o hoje médico, Toninho Poínhas.
E dizer tb que um dos grandes clientes do Cordeiro, era o meu falecido pai. Falo-vos, dos anos 40. Que é como quem diz…a beber há muitos anos.
Mesmo madala. Bolasssssss.