PONTAPÉS NA GRAMÁTICA!
Estolano veio com uma história de bradar aos céus. Este meu velho companheiro da instrução primária constatou que o seu neto, de 8 anos de idade, “já fala como falam muitos locutores da rádio e da televisão”. Respondi-lhe dizendo que isso era bom. Ao menos o miúdo tinha referências de como se fala correctamente a língua de Camões que por sinal é língua oficial em Moçambique. Estolano ficou furioso. Ou porque eu não tinha percebido nada, ou porque estava a fazer dele um parvo. Só depois de puxar pela cabeça entendi onde Estolano queria chegar. Lembrei-me duns escritos que fui lendo a semana passada, por ocasião do Dia Mundial da Rádio, e onde se comentava a forma como alguns (a maioria) dos nossos locutores, entrevistadores, jornalistas de rádio e televisão, moderadores, e outros comunicadores se confrontam com a língua portuguesa, que eles veiculam todos os dias nos respetivos órgãos de informação. Alguns veiculam, mas não dominam. Muitos não sabem como se escreve e muito menos como se lê determinada palavra. Se soubessem não nos confrontariamos diariamente com esse grupo de profissionais a massacrarem o nosso juízo com palavras como garragem, Gorrongosa, enconomia, Joanquim, Fereira, varrão e por aí fora.
Quando se ouve este tipo de disparate na rádio e televisão, não admira que o meu filho ou neto “absorva” este churrilho de asneiras e utilize esta forma de falar no seu dia a dia com os seus pais, com os seus amigos ou com os seus colegas de escola. Quando se chama a atenção da criança para o erro que ela está a cometer, a resposta, em jeito de defesa, vem rápida: “pai, eu ouvi isso na rádio e na televisão”, ou então “na minha escola fala-se assim”. Onde fica o professor nesta história toda ? Ninguém sabe. Infelizmente alguns professores cometem os mesmos erros.
Por isso tem razão o meu amigo Estolano. Basta ouvir (ver) diariamente a Rádio Moçambique, TVM, Miramar, TIM ou STV.
Encontraremos com maior ou menor frequência as novas “estrelas” do firmamento da comunicação, que num ápice passaram de soldado raso a general, e agora aparecem do alto do seu pódio feito de pés de barro a quererem dar-nos lições de língua portuguesa. E quando questionamos sobre as atrocidades que eles cometem, são bem capazes de se virarem contra nós, catalogando-nos de “ultrapassados no tempo”. O triste é saber que os patrões desta “gente nova ao microfone” (agora lembrei-me da saudosa Maria Adalgiza), nomeadamente os presidentes dos conselhos de administração, os diretores gerais, os diretores executivos, os chefes de redação ou outros responsáveis com poder de decisão, pactuam com este tipo de situações.
Conheço a história da Rádio Moçambique que, perante tantos atropelos, decidiu criar uma Comissão de Avaliação de Qualidade, que tinha (tem) como objectivo analisar e propor medidas corretivas, por forma a garantir que a tão almejada qualidade seja uma imagem de marca da nossa estação pública de radiodifusão. Pelo que sei as constatações constam de relatórios que ficaram (se calhar ainda lá estão) nos gabinetes de quem devia tomar medidas para corrigir a situação.
Mas este mal, que teima em conviver connosco, não atinge apenas os nossos filhos ou netos. Atinge o ministro (já ouvi alguns membros do nosso executivo a atropelarem, e de que maneira, a língua de Camões), o deputado, o empresário, o político, o funcionário público, o professor, o médico, o engenheiro, o economista, etc.
Como se não bastassem os atropelos que somos obrigados a “engolir” todos os dias (garragem, Gorrongosa, e por aí fora), ainda há aqueles que decidem imitar o que de mau se faz em outras paragens, no que a comunicação diz respeito.
Não me esquecerei, a propósito destes atropelos à língua portuguesa, e à forma como ela (mal) é veiculada por alguns dos nossos profissionais dos órgãos de informação, dum comentário que recebi do escritor, poeta e amigo Eduardo White, e que reproduzo com a devida vénia:
“O que me entristece neste meu País, o que me constrange verdadeiramente, é que se continua a cultuar a promoção do medíocre e dos medíocres, a promover o inqualificável e os maus qualificados, a aplaudir o que não tem valor e nos desmerece, em detrimento do que devia e dos que deviam, por todo o seu mérito, ser acarinhados, incentivados e homenageados pelo trabalho que desenvolvem a bem de todos e da Nação. Mas o que se vê é o contrário de tudo isso. Um abominável insulto à consciência de quem a tem e à inteligência de quem a cultiva”.
Bem hajam os profissionais (muito poucos) que nos brindam diariamente com trabalho de qualidade. Esses felizmente sabem que comunicar (em rádio ou na televisão) é uma arte. E arte não é para todos.
PS: artigo escrito por ocasião do Dia Mundial da Rádio, comemorado no passado dia 13 de Fevereiro.
João de Sousa – 19.02.2014