FIGURAS MOÇAMBICANAS DO NOSSO TEMPO
Alexandre: – “O PIRICAS de Lourenço Marques ”
Escrevi este post depois de ler o artigo, sobre o Hotel Girassol, publicado no livro do João Mendes de Almeida: – “Lourenço Marques a mais bonita cidade africana do seu tempo”. – Sem dúvida o livro mais completo até hoje editado, sobre: – Locais, gentes, figuras e não só! Que fizeram da “Pérola do Índico” – “…a mais bonita cidade africana do seu tempo”.
Ao referir o Hotel Girassol pretendo que os leitores do BigSlam recordem ou fiquem a conhecer melhor uma figura que fez parte da sua história: – “O Piricas”. – Porque aonde ele estivesse não passava despercebido a ninguém!
Era acarinhado por todos, porque sofria da síndrome de Down.
O nome dado pela medicina a esta doença é trissomia 21. É um desvio não muito comum nos humanos, caracterizado por atraso mental e anomalias morfológicas.
Infelizmente ainda não tem cura!
Também é um dado adquirido que os seus portadores têm uma esperança média de vida mais curta que os não portadores.
A educação e cuidados especiais aumentam a sua qualidade de vida. Algumas destas crianças, mesmo com o problema de comunicação oral pela articulação da fala, frequentam escolas comuns. Outras requerem ensino especializado. Há até algumas a frequentarem o ensino superior.
Durante a idade adulta podem até, executar alguns tipos de trabalhos. Mas necessitam sempre de apoios familiares, ou outros!
De há uns anos a esta parte dá gosto ver a alegria que sentem ao actuarem em competições desportivas e olímpicas.
Esta doença foi conhecida até fins dos anos 50 do século passado, por Mongolismo. Hoje esse termo é usado em sentido pejorativo.
“O Piricas”
Quando falávamos para ele: – era o Alexandre.
Quando falávamos dele: – era o “Piricas”.
Até hoje, em conversa com amigos, não sei quem lhe pôs esta alcunha!
Era uma figura conhecida da antiga Lourenço Marques dos anos 50 ; 60 do século passado. Talvez, mas não só! Por os seus familiares colaborarem no Hotel Girassol, que foi propriedade do seu irmão Edmundo, conhecido por Mona. E que depois da falência passou a ser gerente.
Sobre o Hotel Girassol o João Mendes de Almeida na página 97 do seu livro, diz:
– [….] ”Tem todo o cabimento lembrar aqui uma das figuras mais populares da cidade, ligado ao Hotel Girassol. Referirmo-nos ao Piricas” [….].
Ao contrário do “Já Lá Vai” (clique AQUI para ver este post) que utilizava uma linguagem de insultos e palavrões quando alguém ousava contrariá-lo, o Piricas era de poucas falas e educado. Nunca lhe ouvi palavrões nem insultos, contra alguém. Sorria até, quando por brincadeira se metiam com ele!
Era visto com alguma frequência, entre outros locais, nas pastelarias Princesa, Pigalle e na baixa.
Mas era nas matinés de fim de semana do cinema Scala que era visto com frequência. Onde os porteiros e arrumadores num gesto de simpatia lhe davam apoio.
Rui Knopfli dedicou-lhe estes versos:
“Matinés do Scala”
Obrigatoriamente aos sábados à tarde.
O episódio da série, os desenhos animados
e a coboiada. Ao intervalo, a surtida
ao Hazis para comprar scones e laranjada.
Devolvida a senha de entrada, recomeçava
O espectáculo. Na fila Z, rente
à pantalha, gesticulante, o Piricas
regia a partitura. Hopalong Cassidy
jogava à porrada, sem que o sacana
do chapéu de aba larga lhe caísse,
alguma vez, da pinha. Empinando,
enfunadas as crinas ondulantes, palominos
amestrados completavam o circo. Mas,
neste embuste, o único herói autêntico
era, no comando das operações, o Piricas.
Rui Knopfli, in “O monhé das cobras”
Sei que não passava privações nem necessidades, mas lembro-me de algumas vezes no átrio do cinema, quando um conhecido lhe dirigia palavra; ele com um timbre de voz quase imperceptível, a rir, fazia um pedido:
– “Dás-me (ou emprestas-me) uma moeda? E normalmente mostrava umas 2 ou 3 moedas pretas “quinhentas” (?) (50 centavos) que tinha na mão.
Perguntávamos para que queria a “moeda”? – Metia a mão no bolso e tirava mais algumas e apontava para a arca-geleira dos “ice creams” na pastelaria.
Como diz o Rui Knopfli, no seu verso: – “Na fila Z, rente à pantalha”. – Raras foram as vezes que nas matinés de fim de semana, no Scala, não o encontrasse – na 1.ª fila (Z) rente à “pantalha” (tela/palco) – sentado nos seus lugares preferidos: – Os lugares do meio!
Do seu lugar, no intervalo dos filmes, muitas vezes virava-se para trás,”gesticulante”, com o braço no ar, cumprimentava a plateia. – Como era popular, também era correspondido.
Porque ia sempre para a 1.ª fila, quando o víamos no átrio, perguntávamos-lhe se ia ver o filme que “primeiro que nós”! – Por nos ver rir da “graçola”, ria também!
Mas ás vezes, a seguir, lá vinha o pedido habitual: – “Dás-me uma moeda?”
- Porque alguns amigos, leitores do BigSlam, me têm relatado “episódios” passados com o “Piricas” agradecia que os dessem a conhecer aqui num breve comentário.
Não perca o próximo FIGURAS MOÇAMBICANAS DO NOSSO TEMPO – “O Gigante de Manjacaze”
Para nós, com o BigSlam, o mundo já é pequeno. Muito pequeno!!!
João Santos Costa – Março de 2019
10 Comentários
f.ramos34@hotmail.com
Conheci bem o Piricas pois que, trabalhei como arrumador no Scala no ano de 53. O Piricas, como bem foi relatado, não faltava ás matinés de Sábado. Mesmo tendo entrada gratuita, ele fazia questão de comprar bilhete com o dinheiro que juntava do seu peditório. Parece que ainda o estou a ouvir ( é pá dá lá um escudo, não sejas chato, dá lá ) Logo que juntava os 10,00 escudos, lá ia ele directo á bilheteira comprar o bilhete e nem queria saber se havia fila ou não. Quanto ao lugar DELE era de facto na 1ª. fila mas não a Z mas, e disso tenho certeza, ( como arrumador conhecia bem a sala ) era a GG e a cadeira, a Nº. 14. Tentei enganá-lo uma vez em que a sala estava cheia e sentei-o na 15 e ele depois se levantou, olhou e arrancou o garoto que mandei sentar na 14 e se sentou. Não levei a melhor. Se hoje fosse vivo, estaria com cerca de 98 anos. Sinto saudades das brincadeiras com esse “garoto “.
Neza P Antunes
Estou a imaginar a cena… E a rir-me óbviamente.
Bons tempos. Recordar esta figura típica foi muito bom. Fez saudades.
Teresa
O César aparecia todos os dias no café Safari, com livros em baixo do braço, fingindo que estudava. O café estava sempre cheio de estudantes. Era tratado com carinho e todos gostavam de lhe puxar pela língua. Tinha piada
Jose Pedro Flores Cardoso
É sempre bom haver alguém que nos faça meter a marcha atrás, e recordar estes episódios girissimos.
De vez em quando, pssava no Catoja onde fazia uma colecta boa para um par de gelados.
Belos tempos.
Obrigado por nos proporcionares estes minutos de recordação.
Um abração
Francisco Velasco
Caro João
Quem não se lembra do Piricas que nos abordava na Pastelaria Scala com o pedido de uma moeda? Na altura era hábito dos jogadores de hóquei em patins reunirem-se na Pastelaria um tanto antes da hora do início das Caboiadas e Episódios de Sábado à tarde.
Ora, certo dia, o Piricas deambulava por ali quando eu entrei no salão de chá depois de vir da bilheteira onde tinha comprado o bilhete para o filme anunciado. No preciso momento em que o Piricas me atacou para obter a moedinha, varri o salão em busca da mesa dos meus companheiros e dou com um colega de equipa, o saudoso Eduardo Passos Viana, sentado e reclinado, no meio de outros, a falar pelos cotovelos.
Algo brincalhão apossou-se de mim e virei-me para o Piricas que estava de mão estendida à espera da “quinhenta” e disse-lhe:
– Dou-te 2$50 mas tens de fazer algo por isso. Os olhos dele brilharam. Estás a ver aquele tipo a esbracejar ali sentado e de costas…? – O Piricas nem queria acreditar… 2$50 ? Era muita massa para aquele tempo… Meneou a cabeça e eu prossegui…
– Bem, vai lá ter com ele e toca-lhe no ombro e quando ele levantar a cabeça para ver quem é, pega-o pelas orelhas e dá-lhe um beijo na boca… e depois vens ter comigo para te dar a moeda de prata…!
O Piricas não hesitou … e vocês deviam ter visto o salto que o Passos Viana deu na cadeira quando se apercebeu da baba que lhe cobriu os lábios. Agitado, a passar a mão pela face, levantou-se logo de seguida e ante uma gargalhada geral, apressou-se para a retrete a fim de lavar a cara.
E o Piricas lá se preparou para ir acomodar-se na primeira fila, como era usual. Eu inseri-me no grupo amigo, sem dar a entender que dera origem àquela paródia. Claro que mais tarde todos ficaram a saber que tinha sido eu.
Bons tempos que já não voltam mais…
Ernesto R. Silva
Sem dúvida alguma, o Piricas foi uma uma pessoa que pelo seu problema se tornou notado na ex L.M.. Além do seu problema, com o qual convivia sem grandes preocupações, era uma pessoa divertida, aliás bem demonstrativa dessa forma de estar é sem dúvida alguma a pequena descrição atrás referenciada pelo Arnaldo Pereira. brigado João por nos activares a memória com estes teus excertos.
Victor Carvalho
Sobre o Piricas pouco resta para dizer pois a sintese que fizeste é mais que suficiente para as “estórias ” sobre ele. Lembro de o ver na Princesa e aos sábados nas matinees Scalad e a estória da 1ª fila era a mais falada. Obrigado João Santos Costa por mais umas recordações. Abraço
Virgínia Pinto
Parabéns e obrigada por esta bela reportagem. Fizeste me recuar e relembrar vários lugares e situações que aconteceram na juventude. Quanto ao “Piricas” foi bom relembrar pois já estava um pouco esquecido. Continua com os teus bons artigos para que me ative a mente que anda um pouco longe dos belos momentos da minha ( nossa) juventude. Bjs
Arnaldo Pereira
Conheci muito bem o Piricas.
Sabia da razão dele querer ver o filme primeiro que todos … e por isso escolhia a primeira fila do cinema.
Mas tenho um episódio para contar passado com ele e no qual eu estava presente e, inclusive, participei.
Passou-se entre os anos 1962 e 1965, quando eu pertencia ao elenco artístico do RCM.
Um dia, no “Café do RCM”, estava comigo na mesma mesa um amigo (de que não me lembro – sei apenas que não estava sozinho) e também o Piricas – só não me recordo se já lá estava ou se veio a sentar-se depois – mas creio que se sentou para nos pedir uma moeda.
A dada altura, alguém duma mesa vizinha meteu-se com ele e nós, eu e o meu outro companheiro de mesa, dissemos ao Piricas que atirasse um guardanapo (de papel) amarrotado para os ocupantes da referida mesa, o que ele prontamente fez.
Só que, por ser muito leve, não chegou a atingir o objectivo. Foi então que lhe sugerimos que molhasse o guardanapo no copo de água que estava sobre a mesa. Feito isso, lá lançou de novo a sua “granada molhada”, desta vez com sucesso.
Perante a reacção dos presentes na mesa, que olharam de imediato para ele, nós dissémos: Disfarça!, Disfarça!
Foi então que o Piricas virando-se de lado e assobiando … mas olhando de soslaio para a outra mesa, continuava a assobiar.
Foi um fartote de risada ver a atitude dele a assobiar e a voltear a cabeça fazendo uma expressão (que só dele) de quem não tinha nada a ver com o assunto.
E repetiu a proeza, passados alguns minutos…
Mas havia outro moço (esse, mais novo que o Alexandre) – o César – igualmente com a síndrome de Down, que vivia na zona da Munhuana, que não sendo tão popular (era substancialmente mais novo, pois estava ainda na adolescência), também proporcionava alguns episódios caricatos e humoristas a quem com ele privava.
jmendesdealmeida@gmail.com
João, como é bom recordar as nossas gentes e os locais onde fomos tão felizes…grandes matinés assistimos nós no Scala, ou com a nossa malta ou, de mão dada, no balcão e mais para trás, com alguma namoradinha da ocasião…tempos que não voltam mais…