EFEMÉRIDE: 20 de Janeiro de 1931… Guilherme de Melo
Conheci pessoalmente Guilherme de Melo por via do António Alves da Fonseca, o meu “boss” nas Produções GOLO, nos meados dos anos 60, numa altura em que ele passou a ser colaborador da Agência de Publicidade, cabendo-lhe a tarefa de escrever textos para alguns dos programas, com destaque para o “Extensão 10”, que era transmitido todas as noites das 22 às 23 horas, no Canal “A” do então Rádio Clube de Moçambique, e cuja locução estava a cargo de Fernando Ferreira e Maria Ricardina. Em alguns momentos eu e o Francisco Munoz colaborávamos na leitura dos textos.
Recordo-me que no âmbito da sua colaboração com as Produções GOLO, Guilherme de Melo fez parte do júri local de um final do festival da canção da RTP, que foi transmitido directamente do Teatro S. Luís em Lisboa para Moçambique. Na capital portuguesa a reportagem directa do acontecimento esteve a cargo de Paulo Terra.
Guilherme José de Melo fez os estudos liceais em Lourenço Marques, ingressando no funcionalismo público que abandonou, aos vinte anos de idade, para iniciar a actividade de jornalista, primeiro no “Notícias da Tarde” (1952) e depois no “Notícias”, (1952-1974), onde atinge o lugar de director-adjunto.
Os seus primeiros poemas foram publicados em 1949, no jornal “Itinerário”, continuando a colaborar com poesia e contos em diversos suplementos literários e revistas, tais como “Capricórnio”, “Paralelo 20”, da cidade da Beira, e “Colóquio/Letras”, de Lisboa.
Entre 1956 a 1959, colaborou no “Teatro Em Sua Casa”, programa de teatro radiofónico dirigido por Reinaldo Ferreira, no Rádio Clube de Moçambique, quer escrevendo peças originais, quer adaptando obras de outros autores, designadamente de Henrik Ibsen e de Federico Garcia Lorca.
Foi como ficcionista que publicou os primeiros livros: “A Menina Elisa e Outros Contos” (1960), “A Estranha Aventura” (contos, 1961) e “As Raízes do Ódio” (romance, 1965).
Neste último, a abordagem feita ao racismo gerou acesa polémica, acabando a PIDE por apreender a edição. Em 1969, publicou um trabalho de reportagem sobre a Guerra Colonial, que então decorria, sob o título de “Moçambique, Norte – Guerra e Paz”, que lhe valeu o Prémio Pêro Vaz de Caminha. No jornal “Notícias” manteve por muito tempo uma coluna denominada “Folhas Dispersas”.
Em Outubro de 1974, resolveu radicar-se em Lisboa, trabalhando no gabinete de imprensa do IARN – Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais e, a partir de Janeiro de 1976, como redactor do “Diário de Notícias”, onde se manteve até 31 de Dezembro de 1996, altura em que se aposentou. Nesse período do DN, ele convidou-me para ser Correspondente do jornal em Moçambique, trabalho que desenvolvi por quase 2 anos.
Ele foi uma das primeiras personalidades a assumir publicamente a sua homossexualidade.
Casou-se mas pediu a anulação do casamento por sentir que não podia viver senão como homossexual, uma identidade que assumiu corajosamente num meio preconceituoso.
Algumas das suas obras tratam de temas da vivência homossexual, como “Sombra dos Dias” (1981) ou “Gaivota: um olhar (por dentro) da homossexualidade” (2002).
GUILHERME DE MELO… por Mário Ferro, com a devida vénia.
Em 1983, ele visitou Moçambique durante duas semanas, a convite do jornal “Noticias” (quem teve a ideia deste convite foi Samora Machel).
No dia em que chegou a Maputo, no seu retorno à terra natal, a primeira coisa que lhe fiz foi ir directamente do aeroporto para as instalações do “Notícias”.
Ali chegados, quando nos preparávamos para subir para o primeiro andar, eu disse-lhe: Guilherme, as escadas são tuas. A emoção apoderou-se dele, as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Começou lentamente a subir degrau a degrau. E, quando chegou ao primeiro andar, deu de caras com um contínuo que era do tempo dele. Como por um íman, abraçaram-se fortemente e choraram copiosamente. A noticia da presença dele no jornal espalhou-se rapidamente e o pessoal da velha guarda apareceu todo. Foi uma cena extremamente emocionante. No último dia da visita, estávamos os dois no meu gabinete, eu disse-lhe: Guilherme, aqui está a máquina para escreveres o que quiseres para ser publicado amanhã na última página do jornal. Em menos de meia hora escreveu um belíssimo texto.
Depois ficou a promessa de que ele regressaria em breve. E aconteceu numa altura em que Samora Machel foi fazer uma visita à província de Manica.
Embarcámos no dia anterior para Chimoio num “Antanov” da Força Aérea. Por volta das nove horas, Samora chega a Chimoio. Depois dos cumprimentos protocolares habituais e tradicionais, havia chegado o momento de embarcar nos helicópteros da Força Aérea. E como havia sempre problemas em arranjar lugares nos aparelhos para os jornalistas, foi-me dito para preparar uma lista de jornalistas.
A dado momento, numa roda de conversa de circunstância, Samora disse para partirmos e em voz alta perguntou: “Mário Ferro, onde está a lista dos jornalistas”? Apresentei-lhe a lista.
De repente, Samora perguntou como que muito admirado e espantado: o Guilherme José de Melo está cá? E o Guilherme avançou e respondeu: Estou aqui Sr. Presidente.
“Ó Guilherme, tens o cabelos todos brancos. Parece a neve da Serra da Estrela” – atirou Samora. Abraçaram-se fortemente. Samora estava com um ar feliz, os olhos brilhavam e o sorriso era aberto de felicidade. E disse-lhe: “Guilherme tu vais viajar no meu helicóptero em toda a visita. És meu convidado”.
De regresso a Lisboa, o Guilherme José de Melo publicou um suplemento de quatro páginas no “Diário de Noticias”, sobre a visita e sobre o que falaram durante as viagens de helicóptero.
Esta relação foi sendo aprofundada, quando Samora acompanhava o José Craveirinha nas visitas ao jornal “Noticias”. Estavam sempre juntos. Guilherme escreve vários artigos publicados no diário, com base em informações dadas por Samora, que fez questão de se recordar dessa época: Guilherme lembras-te daqueles artigos que escrevíamos? E o Guilherme respondeu: Muito bem, mas o pior era a tesoura da censura.
Nota: Nos finais da década de cinquenta, Guilherme José de Melo sofreu um acidente de viação na baixa da Palmeira e fracturou uma costela. Internado no Hospital Miguel Bombarda, o seu auxiliar enfermeiro era Samora. Foi assim que se conheceram.
Obs: Se estivesse fisicamente connosco, Guilherme José de Melo comemoraria hoje os seus 89 anos de idade.
João de Sousa – 20.01.2020
8 Comentários
Arnaldo Pereira
Conheci pessoalmente o Guilherme José de Melo, mas não privei com ele.
Sabedor da sua homossexualidade, não me considerando eu um homofóbico (já que não tinha – e não tenho – ódio aos homossexuais … e até convivi com alguns, no meio artístico em que durante um período da minha vida me movimentei, no RCM), desloquei-me certa vez à Redacção do jornal Notícias, em resposta a um chamamento através do jornal, na sequência de um artigo que eu havia escrito e foi publicado.
Quem me esperava era o, então Chefe de Redacção, Guilherme José de Melo, que me recebeu com cordialidade e me forneceu as informações que tinha destinadas para mim.
Sempre que calhava cruzar-me com ele cumprimentávamo-nos educadamente. Mas era só.
Ainda cheguei a falar com ele já em Lisboa, no Diário de Notícias.
Uma coisa, porém, confesso. Apesar de “condenar” a homossexualidade (ou a forma como era, então, ajuizada), admirei nele o facto de se assumir publicamente na sua condição.
Rosa
Obrigada Sr. Joao de Sousa. Brilhante!
Aurelio Furdela
“De repente, Samora perguntou como que muito admirado e espantado: o Guilherme José de Melo está cá? E o Guilherme avançou e respondeu: Estou aqui Sr. Presidente.” Gosto desse trecho, pois mostra como os ventos da História operam profundas mudanças, até nos homens. O trecho relata um encontro com lugar na década 80: “Estou aqui Sr. Presidente.” Mas havia bem pouco tempo, Guilherme projectava de Samora a imagem de terrorista, cobarde e traiçoeiro. Ventos da História!
Humberto Tercitano
Era eu um “mufana” que deambulava pelas ruas de Lourenço Marques entre escola e treinos de basquetebol no Desportivo sobre a batuta do saudoso Jose Lopes e ja ouvia e lia o Guilherme de Melo. Tive conhecimento sobre ele atraves do meu pai. Acontece que ja estando a viver em Portugal, numa das minhas tentativas de mudança de emprego fui apresentado ao G. Melo no Jornal Noticias. Ia como candidato a trabalhar a publicidade como criativo grafico mas acabei optando por ir para uma Agencia Publicitaria. Ele teve a generosidade de convidar me a visitar as instalacoes e depois ofereceu se para me pagar o almoco. Era realmente um homem com coracao grande. Gostei do texto do tambem saudoso Joao de Sousa, um ex-libris no panorama desportivo moçambicano e do qual eu delirava com os relatos dele, seja no basquetebol, futebol e hoquei em patins. Um abraco a todos!
ABM
Tirando ser de lá e isso da sexualidade, que já é muito, a impressão que sempre tive foi que o Guilherme, politicamente, navegou sempre entre os pingos da chuva, como a maior parte dos seus contemporâneos. Só a enorme generosidade do João deixa passar isso.
Mais uma coisa: Samora nunca foi enfermeiro no tempo colonial.
Repito: Samora nunca foi enfermeiro no tempo colonial.
O resto do texto, cinco estrelas.
ABM
Rosa
ABM pode dizer porque afirma com muita conviccao que o Samora nunca foi enfermeiro no tempo colonial? Fiquei surpreendida e ficaria grata se me dissesse o que ele foi entao. Obrigada.
Eduardo Meixieira
Guilherme de Melo, polémico, frontal, corajoso e jornalista de nome, bem popular, era amigo dos meus pais e minha família. Encontrei-o em plena zona de guerra no norte de Moçambique, estava eu a fazer uma evacuação ” zero horas”, e ele e um fotógrafo a fazerem reportagem. Fez uma foto da evacuação e ofereceu o jornal aos meus pais, pois a foto mostrava-me a pôr um ferido no helicóptro. Encontramo-nos várias vezes em Lisboa, pois também estive ligado ao jornalismo. Foi-me impossível ir ao seu funeral, pois estava no Porto. Descanse em Paz!!! Gostei deste artigo e aqui ficam os parabéns ao Autor do artigo!!!
Silvino Costa
Gostei deste trabalho do João de Sousa, não só porque se refere a uma pessoa que muito apreciei e estimei e de quem durante pouco tempo fui colega no quadro administrativo mas também pelo facto dele ter sido uma figura singular e muito popular em Moçambique. Todavia, o final do texto deixou-me muito triste, visto estar convencido de que ele ainda era vivo.
Já que o João é “coleccionador” de retalhos biográficos de muitos moçambicanos, será que possui algum contacto da antiga locutora do RCM Maria Ricardina?
Eu vou continuando à coca de novas efemérides…