FIGURAS MOÇAMBICANAS DO NOSSO TEMPO: Guilherme José de Melo
“Vamos ter de parar o jogo!” Isto dizia um de nós, quando estávamos a jogar futebol no passeio, e via aquele casal de namorados aproximar-se. Não sabíamos quem eles eram. Mas isso não nos importava! Queríamos era que passassem depressa para continuarmos a jogar.
Nos anos 52/53 do século passado, a minha morada em Lourenço Marques era: Rua Princesa Patrícia, n.º 69 B – R/C, entre as avenidas Gomes Freire e Massano de Amorim.
Notava que alguns dias, mais na parte da tarde, passava por ali na direção da Massano de Amorim um par de namorados, homem e mulher, que interrompiam as nossas brincadeiras no passeio. E eu com os meus 8 ou 9 anos queria era andar na “moina” (brincadeira) no passeio e não só, com o meu vizinho Rui os seus irmãos Luís e Carlitos. Com o Manecas não tanto, porque era muito mais novo que nós. Não menciono o seu apelido porque não lhes pedi autorização. Mas pode ser que ao lerem este artigo o refiram. Percorríamos a Massano de Amorim até ao Hotel Polana, descíamos a barreira para brincarmos com os caranguejos pequenos, no areal da praia da Polana.
Só anos mais tarde, depois de passar por ele muitas vezes na baixa da cidade de Lourenço Marques, ver fotografias no jornal e por entrevistas, é que soube que aquele casal de namorados eram o jornalista e homem da cultura, Guilherme de Melo, e ela já era sua esposa (?).
Quando contei isto a amigos disseram-me que estava enganado que não era a esposa. Era sua irmã! Não posso confirmar isto.
Para que a memória não esqueça, vou recordar aos moçambicanos, às gentes que lá viverem e não só! Quem foi este jornalista e homem da cultura.
Nasceu na vila ferroviária de Ressano Garcia no dia 20 de janeiro de 1931. Seu pai era funcionário dos Caminhos de Ferro e a mãe doméstica. Fez o 7.º ano no liceu Salazar. Começou a sua carreira na administração pública, mas em 1952 entrou para o Jornal Notícias da Tarde e mais tarde para o Notícias, onde chegou a diretor-adjunto.
Vida e obra
“… De 1956 a 1959 colabora com Reinaldo Ferreira, Jr. no teatro radiofónico do Rádio Clube de Moçambique.
O seu livro de contos A Estranha Aventura foi editado em 1961.
Em 1965 publica As Raízes Do Ódio que foi apreendido pela PIDE.
Escreveu as letras de duas canções do primeiro disco de Natércia Barreto.
Em 1974 lança o livro Menino Candulo, Senhor Comandante.
Casou catolicamente com uma amiga professora que se apaixonou por ele, apesar de ele lhe ter dito que era homossexual. O casamento, nunca consumado, durou quatro anos, acabando por ser anulado, a pedido da mulher. O que contrariou os bons costumes da conservadora sociedade moçambicana. Tanto mais que Melo já era figura destacada.
Em Outubro de 1974, na sequência dos trágicos acontecimentos do 7 de Setembro em Lourenço Marques veio para Lisboa e ingressou no Diário de Notícias onde se manteve até se reformar em 1998.
Entre muitas entrevistas na imprensa, rádio e televisão, é de destacar a sua participação num programa da RTP em 1982 dedicado à homossexualidade (ano em que foi descriminalizada em Portugal). Voltou a ser entrevistado em 1992 no programa da RTP2 Falar Claro. Em 1996, na reportagem da SIC Entre Iguais, e em 1998 no programa Carlos Cruz, Quarta-Feira …”
Guilherme de Melo faleceu de cancro a 29 de Junho de 2013.
Bibliografia
- A Menina Elisa e outros contos (1960)
- A Estranha Aventura: contos (1961)
- Moçambique Norte – Guerra e Paz (1969)
- Menino Candulo, Senhor Comandante (1974)
- A Sombra dos Dias (1981), Prémio Literário Círculo de Leitores
- Ser Homossexual em Portugal (1982), Cadernos de Reportagem
- Ainda Havia Sol (1984)
- Moçambique Dez Anos Depois: Reportagem (1985)
- O que Houver de Morrer (1989)
- Os Leões Não Dormem Esta Noite (1989)
- Raízes do Ódio (1990)
- Como um Rio sem Pontes (1992)
- As Vidas de Elisa Antunes (1997)
- O Homem que Odiava a Chuva e outras estórias perversas (1999)
- A Porta do Lado (2001)
- Gayvota: um olhar (por dentro) da homossexualidade (2002)
- Crónicas de Bons Costumes (2004)
Tenho de vos confessar que, talvez por falta de motivação para ler as suas obras, só li o Menino Candulo Senhor Comandante.
Para, a pedido do meu familiar mais novo lhe poder contar a estória. É um livro de conto, ilustrado com desenhos, sobre a protecção dada pelas nossas tropas às populações do distrito do Niassa, durante a guerra colonial, que contavam com a colaboração de um menino (Candulo) para fazer a “psicossocial” aos outros miúdos.
Quando acabei de o ler, veio-me imediatamente à memória o Daniel Roxo, comandante das milícias daquele distrito, com quem por mero acaso e sem saber quem ele era, falei uma vez!
Foi na minha a chegada a Vila Cabral, uma pequena cidade “militar” no norte de Moçambique, com fraca densidade populacional e poucos automóveis civis.
Estranhei ver naquelas paragens a estacionar, em frente ao café Planalto, um automóvel da mesma marca com o mesmo motor igual ao “Ford Consul” que eu tinha em Lourenço Marques.
Por curiosidade fui trocar impressões com o dono sobre o “comportamento“ do motor e suspensão da viatura, nas “picadas daquelas paragens”.
Depois de me verem falar com ele uns militares que o conheciam disseram-me que era o Daniel Roxo. E contaram-me o que se dizia dele!
Quero mencionar a referência que Guilherme de Melo lhe fez
… Há em todas as guerras, em todas as lutas e campanhas, daquelas figuras que, irrompendo da vulgaridade, de repente se agigantam e transformam naquele misto de realidade e fantasia com que depois se haverão de perpetuar, de geração em geração, entre as páginas da História e as brumas da Lenda. Francisco Daniel Roxo é um desses homens, uma dessas figuras …].” (Guilherme José de Melo, Jornalista Moçambicano do DN).
Roxo, por ter sido caçador profissional conhecia bem o distrito! A sua missão era, “com os seus homens”, proteger e apoiar as populações do interior a quem fornecia parte do produto das suas caçadas. E em colaboração com as nossas tropas salvou vidas das partes em conflito.
Por isto foi, durante a guerra colonial, “o civil mais condecorado pelo exército português”.
Mas desde o 25-Abril-74 os sucessivos governos e partidos políticos, talvez para não melindrarem países terceiros, “esqueceram-se” da referência que Guilherme de Melo lhe fez:…“vai perpetuar-se, de geração em geração, entre as páginas da História e as brumas da Lenda”…. e nunca lhe reconheceram o estatuto de Herói Nacional.
Faleceu numa operação militar, próximo do rio Cubango (Okavango) na fronteira entre Angola e a Namíbia, a 23 de Agosto de 1976.
Fonte: Wikipédia.
Para nós, com o BigSlam, o mundo já é pequeno… Muito pequeno!
João Santos Costa – Outubro de 2024
12 Comentários
Conceição Vieira
Não conheci pessoalmente o Guilherme de Melo, mas sei que foi amigo do meu Pai. Em relação ao seu casamento, ouvi dizer que tinha um filho, pelo que a ser verdade, o casamento foi consumado. Verdade ou mentira? Não sei. Ouvi entrevistas dele já em Portugal. Quanto ao Daniel Roxo, leio por vezes, histórias dele numa página de ex-combatentes de Moçambique. O meu Pai era caçador, quem sabe se o conheceu também. João, um texto que é uma bela homenagem ao Guilherme de Melo e também ao Daniel Roxo. Quanto ao esquecimento dos governos, que não têm coragem de homenagear os seus homens, é o que temos.
joão santos costa
Quero vos agradecer o tempo que dispensaram a ler este artigo.
Um agradecimento especial a todos que colaboraram com os seus comentários e dizer-lhes que é gratificante lê-los, porque só o enriquecem.
Estão todos convidados a ler e participar nos próximos artigos/post´s a publicar aqui no BigSlam.
Até breve.
A todos Bem Hajam.
JSC
Joaquim Santos Batista Navarro
Guilherme de Melo um grande jornalista.
Boa discrição sobre a carreira dele e do Daniel Roxo.
Antonio Ughetto
Ah… meu irmão, não foi sonho.. certo que tudo passa mas vivestes tudo isso. Sou uma pequena testemunha ,,, escreves que “nada mais existe ” mas sei que existiu… não foi sonho nesta vida nada é permanente. Um abraço
Ana Paula Azevedo Gomes
Entrevistei, para o meu doutoramento, Guilherme de Melo. Guardo a saudade de um homem sensível, culto e bom, mas que vivia doente numa casa tão pequena e de difícil acesso. Estava a um passo do esquecimento…
Tenho gravadas as suas palavras, pois abriu-me o seu coração e falou-me do seu amor de 30 anos – a pessoa simples e humilde que estaria ao seu lado até ao fim dos seus dias.
Jamais esquecerei a profundeza dos seus lindos olhos azuis, a mágia que sentia ao revelar-me que morreria sem que Moçambique o considerasse um escritor da literatura moçambicana.
Antes de me despedir, confessou-me a tristeza em saber que o seu gato iria sentir muita saudade , quando ele partisse.
Por fim, disse-me: agora espero que a morte, como uma luva, me venha buscar.
Emprestou-me toda a sua obra para a ler. Envergonhei-me, nesse dia, de lhe dizer que gostaria de ficar com os seus livros. Uma das suas mágoas, também – a obra reduzida ao silêncio e ao pó, quando partisse.
A elite que o acompanhou em Portugal já, nessa altura, o tinha esquecido.
Obrigada pelo artigo sobre o Guilherme de Melo. Trouxe-me à lembrança a sua voz e o seu sorriso doces.
João Santos Costa
Muito obrigado por nos contar o que não sabíamos sobre ele, Ana.
Faço ideia a tristeza que ele sentiu quando doente se sentiu esquecido pela elite que aqui o acompanhou!
Gostei de ler o seu comentário.
Obrigado, Ana.
José Alexandre Bártolo Wager Russell
Uma bela resenha de dois conhecidos moçambicanos (não sei se ambos nascidos lá, mas pouco importa), cada um com a sua maneira de ser e estar. Segundo alguém me disse em tempos, a mulher de Guilherme de Melo era uma bela figura. Coisas e memórias de outros tempos que tu João nos vais recordando.
Nino ughetto
Eu conheci meio mundo.. Nasci em L.Marques frequentei muitas escolas desde da ” Correia da Silva à Namaaacha, ,Fernando pessoa ,Maristas, escola comercial e Liceu Salazar… enfim fiz ,alguns desportos principalmente o Karaté co o Pr; Helmano… ;Depois de tantas asneiras de estupida adolecencia, cresci e embarcarào me para a tropa…Là foi a maior aventura da minha vida… Fiz novos amigos ,dali fui para o Norte onde fiz desenas de amigos e conhecimentos, (infelizmente muitos muitos morreram là)depois de un ano em Boane…embarquei para Napula Tete,,Vila Cabral (onde conheci o meu primeiro amor, Leonor)…,Niassa,,Marrupa, Mueda Mocimbo da Praia e tantos outros lugares de zona de guerra, e para dizer a verdade fiz TODO o Norte. E…là deixaram:me 24 meses….Poderia escrever um livro de 200 paginas se eu fosse dotado para escrever como o ORLANDO VALENTE,meu ex colega da Namaacha…Recordaçoes de Moç ou melhor de L.Marques. …sào infinitas..Desde o Alto Maé a Manhangalene, Polana e baixa, Conheci tudo e todos… Vivi,vivi vivi e vivi…Meu querido Pai Ludo Ughetto ,o homem mais extraordinario que conheci, Ele fez de tudo na vida, foi ele que organizava os combates de boxe, de touradas, de cantores mondiais que vinham Do estangeiro como de Portugal ,enfim TUDO PASSA TUDO ACABA.. E aqui estou nesse novo mundo(FR.) um mundo diferente e contrario de tudo que vivi..Acredito mais que foi um sonho nada mais existe….Um abraço
Maria João Necho Aguiar
Grande jornalista ,grande homem, muito amigo de outra grande figura do jornalismo em Moçambique que agora recordei,Lisete Lopes falecida muito nova de Cancro ,As cartas de correspondência entre eles foram publicadas no jornal noticias?Já ela em tratamento no IPO de Lisboa.
Quanto ao comandante ROXO era uma lenda na minha juventude.
..,
Rogério Machado
Houve heróis em Moçambique… entre eles, Daniel Roxo… e um, pouco falado dos GEP’s, o capitão Big One, tão grande (não em tamanho ..) por suas ações militares.
Pra mim, não fã de homossexualismo, nada contra desde, que não comigo… kkkkkkkk… tenho como “herói” tbm (porquê, não?), o próprio Guilherme José de Melo, quando diz a uma delegação do novo governo de Moçambique, que foi exclusivamente a Lisboa convidá-lo para futuro ministro, salvo erro de Educação e no novo país… “Servi a velha senhora… não vou servir outra!” recusando assim se “converter” a uma ideologia, que nunca apoiou…
Que sirva de exemplo pra muitos, que de Moçambique se foram agarrados às cuecas e que hj professam ideais, de quem os lascou…
E mais não digo… kkkkkkkkkk
roberto.woodcock@gmail.com
João pouco ou nada posso contribuir. Pelo contrário. Abraço
Celia Stichini Quartin
Guilherme de Memo, pessoa de grande cultura e uma simpatia. Era bastante amigo da minha mãe, e fazia sempre os seus comentários À apresentação anual das alunas da Escola de Ballet da minha mãe, Lubélia Stichini. Não me lembro em que ano, mas ele foi visitar a minha mãe ao Estoril, e ofereceu-lhe um livro, a Sombra dos Dias, que não cheguei a ler. Nessa altura eu ainda não estava em Portugal.