A MINHA PRENDA DE NATAL
A instituição para a qual trabalho, dá-me sempre, por esta altura do ano, uma prenda de Natal. Em tempo recuado tínhamos de “bichar”, para recebermos arroz, açúcar, óleo, farinha, frango … enfim, produtos de primeira necessidade para alegrar a nossa Ceia.
Com o decorrer do tempo, o método mudou. Tornou-se mais sofisticado. Hoje recebemos um “voucher” e com ele, vamos comprar o que achamos mais conveniente, num supermercado definido pela nossa entidade patronal.
Para alegrar o meu Natal em dobro, este ano recebi dois “vouchers”. Um que me habilita a comprar o que eu quero e um outro, em forma de nota interna, dando conta que “o prazo de validade do Contrato em Regime Livre que vincula o senhor à Rádio Moçambique para a produção do programa Fio da Memória, caduca no dia 31 de Dezembro de 2015 pelo que informamos que a Empresa não renovará o seu contrato”.
A nota não explica os porquês da decisão. Limita-se a dizer, em rodapé, que “a nova contratação só poderá ocorrer caso o programa tenha patrocínio”.
Dá para perceber que as TDM deixaram de patrocinar o programa e por via disso há que determinar a sua cessação.
Não estou contra a necessidade das realizações radiofónicas terem de ser financiadas ou patrocinadas comercialmente, para garantir a sua sustentabilidade. Estou contra a atitude tomada por quem de direito na Rádio Moçambique, de fazer cessar um programa, por via duma simples nota interna.
Aquando do início do programa (em Outubro de 1989, já lá vão 26 anos) fomos chamados, fomos ouvidos, foi-nos pedida a nossa opinião, foi-nos solicitado o projecto. E só depois dum conjunto de encontros é que nos foi dada a luz verde para o início da transmissão do “Fio da Memória”.
Quando se decidiu pelo fim do programa não fomos nem achados nem ouvidos. Nem nós nem o ouvinte, o nosso destinatário, o pagante da Taxa de Radiodifusão.
Não se deita para o caixote do lixo 26 anos de história. Infelizmente, administrativamente ditou-se a sentença.
A ausência de patrocínio não pode nem deve ser a justificação para se acabar com um programa que se confunde com a história da Rádio Moçambique “um programa que é um modelo de concepção, de pesquisa, de trabalho sério, de educação musical e de cultura geral”.
Repito o que disse em relação à decisão da Rádio Moçambique de se eliminar da Grelha os programas “Gha Tshandzala”, produzido pelo Luís Loforte, e “Clube dos Entas”, de autoria do Edmundo Galiza Matos: se os programas não interessam, se os mesmos não se enquadram nos objectivos da Rádio Moçambique, quem de direito deve dizer abertamente. Há que discutir a questão tendo por base argumentos sólidos e não decidir administrativamente.
Quem de direito, que devia ter o condão de dialogar, preferiu esconder-se num papel A4 para ditar a sua sentença.
Recordo que anteriormente processo idêntico foi utilizado para abolir o “Detalhes do Nós Dois, da Luísa Menezes, e o Izyjazz” do Izidine Faquirá.
Este é o processo da caça às bruxas.
Há ou não há na RM uma Direcção Comercial, que tem (ou devia ter) como função, encontrar formas de tornar o programa financeiramente viável? A Direcção Comercial fez alguma tentativa junto do empresariado nacional, no sentido de encontrar patrocínio para o mesmo?
Mais do que isso: se a Rádio Moçambique considera os programas como sendo importantes e necessários (dado o seu conteúdo, perfil, etc …) deve ser função da RM, como veículo público de radiodifusão, assumir os custos de produção desses mesmos programas.
A mediocridade no poder dá nisto. Aos poucos vai-se nivelando por baixo, sem contemplação nem consideração por nada e por ninguém. Combate-se a cultura e a arte para se promover a mediocridade.
E agora, em substituição do “fio da memória” e de outros programas que mencionei, o que vai ser transmitido? O mais conhecido tapa buracos de todos os tempos: música variada, a forma baratucha e preguiçosa de fazer radiodifusão.
No meu meio século de actividade profissional ao serviço da radiodifusão, nunca fui tão humilhado como agora. Infelizmente a minha prenda de Natal chegou-me às mãos, completamente envenenada.
Será este o serviço público de radiodifusão que queremos?
Que fazer? Agradecer aos que foram (e continuam a ser) solidários para comigo e para com o Carlos Silva. E despedirmo-nos dos ouvintes, como sempre o fizemos, quando terminávamos cada programa: aquele abraço.
Se esta tendência não para, como me dizia um amigo meu, “chegaremos ao ponto em que os próprios serviços noticiosos e outros informativos vão ser extintos….por falta de patrocínio”.
PS: Algumas passagens do texto desta crónica são citações de ouvintes/leitores, deixadas em plataformas digitais de informação, a propósito do fim do programa. O último programa “Fio da Memória” vai ser transmitido na Antena Nacional da Rádio Moçambique no domingo, dia 27 de Dezembro do corrente ano.
João de Sousa – 23.12.2015