A empolgante “História do Hotel Girassol”
(2ª Parte)
Com esta 2ª parte dou continuidade à história do Hotel Girassol, tendo a 1ª parte sido publicada aqui no BigSlam no dia 21.11.2022. para ver clique AQUI!
Passo então a transcrever, com a vénia devida, a parte restante do texto da autoria de Madeira Ramos:
“Dois anos passados, um hóspede habitual do Hotel Girassol, contou que a Marietta vivia na Beira com o Sr. Dr. Juiz. Para todos os que a conheciam foi motivo de admiração. Nos anos 50 a sociedade moçambicana era muito conservadora e estas situações não era bem vistas. Muitas pessoas, com boas colocações, tinham perdido o emprego ou foram transferidas para lugares distantes por motivo de divórcio ou conhecimento das chamadas situações de pecado.
A mulher do Dr. Juiz com os filhos formados e os pais enterrados, talvez sabedora do que se passava, veio viver com o marido.
O Sr. Juiz teve de arranjar casa para a Marietta, visitando-a com mais frequência que a decência permitia.
A mulher do Dr. Juiz através do Cardeal conseguiu que ela fosse corrida de Moçambique, o que na altura era possível fazer-se uma vez que ela era estrangeira.
O Dr. Juiz pediu transferência para LM, o que conseguiu devido ao prestígio que havia alcançado no desempenho das suas funções e colocou a Marietta, em Nelspruit uma cidade rural, Sul-africana a uns quilómetros da fronteira de Ressano Garcia.
Passaram a encontrar-se com regularidade, no Hotel de Komatipoort, na fronteira com Ressano Garcia”.
Marietta nesta altura já teria os seus quarenta anos, contudo a sua beleza não sofrera uma beliscadura, pelo contrário a idade trouxera-lhe uma segurança de gestos, uma distinção de maneiras a que a frequência de bons salões de beleza e costureiros não era indiferente.
De quatro em quatro anos os funcionários tinham direito a uma licença graciosa. E o Dr. Juiz aproveitou a oportunidade para passear pela Europa a beleza da Marietta, ignorando por completo a mulher e os filhos.
As poucas pessoas que com eles conviviam contavam que o Dr. estava perdidamente apaixonado por ela com menos vinte anos que ele. O seu ar altivo e arrogante transformava-se por completo na sua presença. Marietta vestiu-se nas melhores casas de Paris e as suas bagagens ostentavam etiquetas dos mais afamados hotéis da Europa.
Vendo que a retirada da Marietta de Moçambique não resolvera o problema muito pelo contrário até parecia que a paixão mais se acentuara, instada pelos filhos, a mulher resolveu pedir o divórcio.
Conhecedor das leis e prevendo que isso acontecesse, o Juiz conseguira a pouco e pouco vender tudo o que os pais lhe deixaram em Ponte de Lima e não foi pouco e o que fora adquirindo na Beira e mais tarde em Lourenço Marques, estava no nome da Marietta.
O caso foi muito falado na altura. O meio era pequeno as pessoas conheciam-se todas e quando se soube, o juiz ficou muito mal visto. Para além da relação, pouco discreta, que mantinha com a Marietta, ser mal aceite por uma sociedade hipócrita e convencional em que o que era preciso era manter as aparências, a forma capciosa e premeditada como tinha retirado aos filhos o património que lhes devia caber, tornou-se tão escandalosa que, os filhos bem colocados e relacionados na Metrópole conseguiram que ele fosse transferido para Macau. Os antecedentes políticos do Juiz só vieram ajudar a tomada desta decisão.
Uma vez em Macau, desesperado e vendo que já poucos anos lhe restavam para se reformar começou a entrar em lobbies que se praticavam muito naquela colónia portuguesa. Longe da sua querida Marietta e com poucos amigos, tentou aumentar o espólio uma vez que depois de reformado não conseguiria manter o nível de vida que a Marietta agora exigia.
Quando o escândalo rebentou houve quem dissesse que só com uma denúncia aquilo poderia ter acontecido. Pode ser que sim pode ter sido apenas pouca sorte. Tantos antes já o tinham feito! A verdade é que a vida em Macau era de molde a uma pessoa perder-se, diziam. Ou se viciavam no jogo ou entravam em facilidades que, de repente, davam para o torto descobriam-se e era o fim.
E foi o fim do Dr. Juiz.
Após um julgamento breve a que as provas evidentes ajudaram, o Juiz foi condenado a dez anos de cadeia. Tinha sessenta anos, só sairia de lá aos setenta. Tentou entrar em contacto com a Marietta. Em vão. As cartas vinham todas devolvidas. Através do advogado procurou saber dela. Parecia ter-se eclipsado. O dinheiro que estava depositado na sua conta era ínfimo comparado com o que era acusado de ter recebido. Provavelmente teria sido colocado numa conta da Marietta e perdera-se-lhe o rasto.
O pouco dinheiro que lhe restava gastou-o em recursos e na tentativa de encontrar a Marietta.
O desgosto minou-lhe as forças e quando a amnistia concedida por ocasião do 25 de Abril, lhe perdoou o resto dos anos de cadeia, estava um velho alquebrado, só e destituído do que de mais importante um homem pode ter – o nome, a carreira e a família. Acho que não há qualquer ordem sequencial nestas três, pois são todas de igual importância e indispensáveis para o bom equilíbrio de um ser humano.
Voltou para a Metrópole.
A mulher que tanto sofrera, não teve coragem de lhe fechar a porta, contrariando a vontade dos filhos que não lhe perdoavam o que havia feito e a forma como destruíra a vida da mãe.
Aos setenta anos apareceu-lhe um cancro na próstata.
Foi operado.
Muito tarde, porém.
A mulher acompanhou-o infatigável pelos corredores do hospital durante os tratamentos dolorosíssimos da quimioterapia e radioterapia. Faleceu passados oito meses. Cerca de um ano volvido morreu a mulher.
Da Marietta nunca mais se soube.
TAVIRA, Horta da Torre, 17.X.03
Um colega do liceu, sabendo que faço colecção de postais, costuma mandar-me sempre um, quando viaja. Actualmente, quase que posso dar a volta ao mundo olhando para esses postais.
Ao agradecer-lhe o postal que me enviara de Megève, com a “Aiguille du Midi”, contou-me ter encontrado a Marietta.
Em Janeiro desse ano, numas férias nos Alpes para praticar um dos seus desportos favoritos – o ski – hospedou-se num hotel particular em Megève, recomendado por um amigo.
Esse hotel apenas dispõe de 12 quartos. Muito confortável, com um ar familiar, mas muito requintado. Quartos amplos decorados com muito gosto e um malão Louis Vuitton aos pés da cama. O pequeno-almoço, que pedira para lhe servirem no quarto, vinha num tabuleiro com loiça Villeroi & Boch e os guardanapos com bordado do mesmo desenho floral da loiça.
Francamente agradado com o requinte do hotel, dirigiu-se à recepção para fazer uns telefonemas. Atendeu-o uma senhora lindíssima que julgou reconhecer, mas de imediato não conseguia identificar.
Passado algum tempo recordou-se – era a Marietta do Hotel Girassol. Dirigiu-se-lhe, cumprimentando-a pelo nome.
Com um sorriso encantador, a senhora respondeu:
– Marietta era a minha mãe.
Esquecera-se que a Marietta era mais velha que ele uns dez anos, pelo que era impossível ter agora cerca de trinta anos.
Pediu desculpa e contou-lhe como conhecera a mãe.
O seu avô que construíra o Hotel Girassol, costumava levar o neto com ele, ao fim da tarde, para tomar um refresco e cavaquear com o Mona de quem ficara amigo.
A filha da Marietta contara então que, quando a mãe saíra da África do Sul, numa digressão pela Europa, e sabendo que aquele hotel estava para trespasse, ficara com ele. Imprimira-lhe o seu cunho pessoal e, a pouco e pouco, foi reunindo um leque de clientes distintos e fiéis.
Hoje, o hotel só recebia os seus clientes ou alguém especialmente recomendado.
A filha da Marietta que, ao acabar os estudos na África do Sul, fora viver com a mãe ajudava-a a gerir o Hotel. A Marietta morrera, o ano passado.
Agora, pensava trespassar o Hotel. Madame Nadine Rothschild estava interessada e as negociações estavam bem encaminhadas.
Com a queda do Muro de Berlim queria ir para a sua cidade natal, a Roménia. O meu colega recomendou-lhe prudência pois viera há pouco dos países de Leste e a vida nesses países ainda estava muito difícil.
Com aquele sorriso encantador herdado da mãe e que destruíra a vida do Juiz, respondeu-lhe, num francês a que a sua pronúncia emprestava uma musicalidade especial:
“J’ai gardé de ma jeunesse assez l’esprit d’aventure pour sentir, sur le point de cette révélation, plus de curiosité que de peur; c’est quelque chose, après tout de pouvoir penser que, dans une semaine, un mois ou un année je pourrai être là pour aider mon pays.”
Tradução: “Conservei desde a juventude o espírito de aventura suficiente para sentir, a propósito desta revelação, mais curiosidade do que medo; é uma coisa, afinal, poder pensar que daqui a uma semana, um mês ou um ano posso estar aí para ajudar o meu país.”
Esta, a história que me pareceu justificar-se ser levada ao conhecimento de todos. Uma história de vida, de pessoas, de sentimentos, de acasos. Afinal, de parte com que Moçambique foi sendo feito.
Pierre Vilbró – Dezembro 2022
3 Comentários
Dave Adkins
Houve hoteles de LM nos anos 70: Polana, Cardoso, Tivoli, etc. Para mím, preferi o Girassol, a minha casita por 3 anos.. menos elegante mais amígavel..
R. Gens
Bases para a moral da estória, esteve o juiz esforçadamente a gamar durante toda a vida para a Marietta comprar um hotel no sitio mais fino da Suiça, e depois de lhe ter dado um pontapé no inhofe. Outra impressão, para o juiz o 25 de abril foi demasiadamente tarde, com o CV de democrata que tinha e os “amigos de Macau” até podia ter chegado a presidente do Supremo Tribunal :-). Ditto.
Luiz Branco
Muito bom mesmo. Noutro país poderia eventualmente dar um bom filme.
Muito obrigado pela revelação e partilha.